Entre sombras e luzes

A importância de discutir e jogar luzes sobre temas polêmicos na literatura cujo leitor implícito são crianças e jovens
Ilustração: Maíra Lacerda
01/08/2025

Texto escrito em parceria com Maíra Lacerda

Marion Brunet, escritora vencedora do Prêmio Alma 2025, prêmio internacional concedido pelo governo sueco, declarou recentemente: “Na França, precisamos considerar mais seriamente a literatura para crianças — precisamos colocá-la no mesmo nível da literatura adulta. Temos ainda um longo caminho pela frente”. Brunet escreve literatura — aquela que adultos leem, aquela que crianças e jovens também podem ler. Expressa, nessa visão, o conceito defendido por esta coluna: a literatura dirigida às crianças não pode abrir mão da realização estética e, em consequência, deve ser avaliada a partir de arcabouço crítico e teórico comum à literatura enquanto arte.

A relação estreita, e muitas vezes desviante, entre literatura e escola é mais do que considerada nos estudos do campo. Ao longo da segunda metade do século 20, o inegável crescimento qualitativo da produção provocou de forma geral o enfraquecimento da função educativa, requerendo um campo epistemológico mais afinado com sua natureza estética. Nas graduações em Pedagogia e em Letras, instituíram-se disciplinas de enfoques voltados a essas demandas específicas, o que, pelo interesse demonstrado, gerou cursos de pós-graduação. O passo seguinte foi o surgimento de simpósios, congressos etc., alimentados pelos grupos de pesquisa em literatura infantil e juvenil — rótulo identitário conveniente ao momento e que tem perdurado, apesar de refutado por escritoras como a argentina María Teresa Andruetto em Uma literatura sem adjetivos.

Conservando o adjetivo, a área cresce, impondo a qualidade de sua produção artística e crítica. No campo crítico, a prova está nas várias publicações e pesquisas de rigor teórico e riqueza analítica, encontradas em múltiplos espaços do país. Universidades como a Estadual do Rio de Janeiro, a Universidade de São Paulo, a Estadual Paulista, a Federal do Maranhão, de Minas Gerais, de Ouro Preto, do Oeste do Pará, dentre outras, têm estabelecido uma tradição de trocas de estudos e de reafirmação de ações pragmáticas e políticas. Em maio último, sob o tema Complexidades Contemporâneas e coordenação de Regina Michelli, Flavio García e Eveline Coelho Cardoso, ocorreram no Instituto de Letras da UERJ, no Rio de Janeiro, o II Congresso Internacional de Literatura Infantil/Juvenil e o III Encontro Nacional de Literatura Infantil/Juvenil. Os pontos fortes do encontro repousam sobre os chamados temas polêmicos (também conhecidos como complexos, delicados ou fraturantes), a censura, a maciça autoria feminina e as questões flagrantes da produção literária e crítica que tem na criança ou no jovem o seu leitor implícito.

Mediar as sombras na literatura: livros que inquietam é a intervenção do venezuelano Fanuel Hanán Diaz. Ao abordar os tópicos referentes a livros proibidos, perturbadores, politicamente corretos, temas tabus, cultura do cancelamento, o pesquisador atua no coração do problema, na consciência de um tempo de polaridades e radicalismos, em que a prática de queimar livros como estratégia de banimento de títulos indesejáveis à ideologia dominante é retomada. Livros potentes são deslocadores, ou seja, “trazem outra ordem e outras palavras”, conforme expõe Fanuel, tomando o conceito de sombra, cunhado por Jung, para base do pensamento de que “um indivíduo não se ilumina fantasiando a luz, mas tomando consciência da obscuridade”.

Inúmeros exemplos, no entanto, evidenciam a prática autoritária da censura, conforme evidencia o relato da professora Denise Lipinski, sobre o acontecido com a obra de Wolf Erlbruch, O pato, a morte e a tulipa. Retirada, após a mediação de leitura realizada com professoras, da condição de livro infantil, e transferida à classificação de obras gerais, teve o acesso condicionado à mediação docente. Em outras palavras: a criança não pode, ela mesma, pegar um livro dirigido a ela, concebido e realizado dentro de seu limite de compreensão e sensibilidade. Cabe à professora decidir se permite chegar à criança uma obra que trata da mais inevitável das presenças na vida humana, e na dos patos também.

Na medida em que não há registro de políticas efetivas de formação de professores para tal mediação, ressalta a professora Denise, qual o real objetivo dessa ação, enunciada como ato de proteção às crianças? Uma ótica de tutela, a revelar mais sobre a falta de preparo da sociedade em lidar com o tema do que qualquer outra coisa. Pois, afinal, de que trata o livro? Da história de um pato que tem a morte sempre por perto, uma companheira nos diversos momentos de sua existência, e que, ao vê-lo findar-se, comovida com sua partida, deposita uma flor sobre o corpo do amigo.

A violência sexual nas infâncias e o silenciamento da homossexualidade na literatura voltada a nosso público foram questões abordadas com clareza e coragem, ratificando-se a visão de um mundo centrado no adulto, que subalterniza os corpos infantis, visando aliená-los em um controle arbitrário e perverso, silenciando meios de informação que tragam esclarecimento, e, principalmente, o acesso à literatura. Porém, se crescem os títulos na área, falta a arte, em produções que, muitas vezes, não passam de cartilhas sobre o que é o abuso sexual e como impedi-lo. Cartilhas podem orientar, ensinar, mas não oferecem a experiência da literatura, identificada em seus principais efeitos sobre o indivíduo por Antonio Candido, no seminal artigo O direito à literatura.

Por aí caminha o pensamento da professora galega Blanca-Ana Roig Rechou, que fechou os trabalhos do congresso. Entre as questões a serem sanadas, como a necessidade de mais estudos no campo, maior presença nas universidades, os perigos do excessivo escoramento em relação a questões didáticas, a distinção entre livros para crianças e literatura para crianças, Rechou destaca a interdependência entre docência, mediação e produção de conhecimento e aponta realizações, como o empoderamento da literatura infantil e juvenil, o aporte literário emprestado às pesquisas e a importância dos grupos de estudos nas universidades, em perspectiva de igualdade com as outras áreas da literatura.

Responsável por um trabalho monumental, com fecundas irradiações no Brasil, Blanca deixa no ar a pergunta sobre um possível retrocesso. O entretenimento em profusão, a rapidez dos atos contemporâneos, o sequestro do tempo da fruição estética e da reflexão são desfavoráveis ao “tempo da leitura. Ela cita o autor e pesquisador português José António Gomes em sua referência às forças sociais no seio da história, e ambos recomendam “usar o livro para o fim do livro”. Ao contrário de levá-lo para as novas tecnologias, trazer as novas tecnologias para o que é livro, ressaltando-se nesse movimento o papel da universidade, a favor da cultura, da educação.

Não foi outra coisa o vivido em três dias do final de maio, proporcionado por um grupo confiante no poder de uma produção que, fiel à natureza do fenômeno estético, deve comover e deleitar. Sísifos, todas, todos, lá estivemos a rolar a pedra para o alto, de novo e de novo, até prescindirmos de qualquer rótulo para a literatura que crianças e jovens também podem ler.

Maíra Lacerda
Designer e ilustradora. Professora no Instituto de Artes e Comunicação Social da UFF, com doutorado em Design pela PUC-Rio. Prêmio de tese pelo Museu da Casa Brasileira. Pesquisa os livros para crianças e jovens e a formação visual do leitor no laboratório LINC-Design.
Nilma Lacerda

Escritora, tradutora, professora, recebeu os prêmios Jabuti, Rio, Brasília de Literatura Infantojuvenil, entre outros. Trabalhou em várias universidades públicas, é colaboradora da UFF. Exerce a crítica de literatura para crianças e Jovens e mantém um Diário de navegação da palavra escrita na América Latina.

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