Entre práticas e desejos

Nossa experiência — seja em sala de aula ou em biblioteca — mostra que quando há acesso, estímulo e acolhimento, a leitura pode se tornar um valor
Ilustração: Maíra Lacerda
02/04/2021

Texto escrito em parceria com Maíra Lacerda

É possível que já não se repita tanto o mote: “Brasileiro não lê, brasileiro não gosta de ler”, mas ele ainda é presente em muitos debates envolvendo o mundo dos livros. Se a pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, cuja última edição teve os dados divulgados em 2020, traz indicadores que podem sustentar essas afirmações, é preciso considerar nossa realidade social, de extrema desigualdade e sem políticas públicas efetivas para que o “gosto” possa se fazer a partir do conhecimento e do contato com o objeto-livro. Apesar de tudo, muitos brasileiros leem. Nossa experiência — seja em sala de aula ou em biblioteca, seja com jovens leitores ou com aqueles profissionais que serão responsáveis pela sua formação — nos mostra que quando há acesso, estímulo, diálogo e acolhimento, a leitura pode se tornar um valor.

O valor da leitura — porque leitura não deve ser apenas “gosto” ou “hábito” — cria-se com a vivência alimentada no exemplo e no afeto. Para isso, é fundamental a figura do mediador ou da mediadora de leitura. Mas os mediadores não aparecem nas curvas dos caminhos nem dão em árvores. São fruto de trabalho, em longa e contínua formação, atendendo à máxima de que para formar leitores, é preciso antes ser leitor.

É antiga a demanda pela disciplina de Literatura nos cursos de formação para o magistério, e são pouquíssimos aqueles que implementaram a medida. Nos cursos de Letras, há um consenso de que os discentes são entusiastas da leitura, o que não necessariamente é verdade. Graduandos dessa área provêm, em geral, de classes sociais sem acesso a livros e que em grande parte escolhem o curso em função da docência. Mas está aí um dos pilares fundamentais desse impasse: não se costuma associar a profissão com o fato de ser leitor de literatura. Porque, reforçamos, a referência que utilizamos em leitura é o texto literário — de qualquer gênero, da epopeia ao rap. É ele que necessita de mediação em que afeto e gratuidade pelo ato de ler se façam presentes. Nas licenciaturas em Letras e Pedagogia, mais do que conhecimento técnico — que não deve ser desprezado — deve preponderar o pensamento de Tzvetan Todorov, em A literatura em perigo: “Longe de ser um simples entretenimento, uma distração reservada às pessoas educadas, ela (a literatura) permite que cada um responda melhor à sua vocação de ser humano”.

Procuramos, portanto, em nossa prática, oferecer literatura como matéria para incorporação à existência, nas condutas que devem movimentar sujeitos e objetos de leitura, qualquer que seja o nível de ensino. Na graduação, em instituições públicas e privadas, eu, Nilma, privilegiei atividades que primassem pela liberdade e passassem longe dos controles tradicionais, em estímulo à troca e ao diálogo, sem incorrer em excessos ou desvios quanto à produção de sentidos. Um clima de aproximação e compreensão em relação ao texto desarmava argumentos que pudessem suscitar dificuldades em relação à leitura: em vez de um mesmo livro para toda a turma, propor um leque de opções, escolha livre, ou sugestões do grupo para trocas efetivas; vinculação das obras às questões existenciais e sociais de uma época, por meio de debates e pesquisas.

Na Universidade Federal Fluminense, trabalhamos ambas, Nilma e Maíra, por alguns anos, construindo, no curso de especialização em Literatura Infantojuvenil, um projeto que beneficiava a experiência da leitura a partir de uma compreensão multimodal do objeto-livro, abarcando a construção de sentidos do conteúdo verbal e visual. Encontramos, em grande maioria, professoras, professores e bibliotecários escolares e comunitários, com pouca experiência na leitura literária que crianças também leem, mas com interesse e desejo em adquiri-la.

O valor da leitura — porque leitura não deve ser apenas “gosto” ou “hábito” — cria-se com a vivência alimentada no exemplo e no afeto.

A compreensão da importância da função perante o público de crianças e jovens que atendiam durante o dia em seus trabalhos fez com que encarassem, no horário noturno, um curso que muitas vezes incluía o deslocamento entre municípios, o paradoxo de eles mesmos não terem se formado leitores. Considerando que essa é uma formação que nunca alcança um fim em si, mas que se constrói no somatório de experiências, era no compartilhamento, na leitura em voz alta feita para o grupo e na conversa que se seguia a respeito das impressões individuais e coletivas, que buscávamos nosso caminho.

Ao defender que, ao contrário de ser disciplina que fique com as sobras da Língua Portuguesa, a Literatura deva estar na base da descoberta dos usos da língua, ocupando espaço no currículo do Ensino Médio, do Fundamental I e II, da Educação Infantil, fazíamos a leitura acontecer na sala de aula. Vale ler Clarice Lispector, Ferreira Gullar e Conceição Evaristo desde a creche, conversar sobre as emoções, as ideias suscitadas. Vale ler também Ana Maria Machado, Bartolomeu Campos de Queirós e Marina Colasanti para além da educação infantil. Quanto menos tarefas forem associadas ao que se ouviu ou se leu, melhor, na medida em que cabe à leitura mover o sujeito para o deslocamento e a reflexão, e não derivar para outras atividades, exercícios, em geral. Vale desenhar, vale escrever, se for do desejo do grupo ou de uma pessoa, mas vale mesmo é falar sobre a leitura, saboreá-la.

Ainda com essa compreensão, eu, Maíra, encontrei no projeto Leitores sem Fronteiras um espaço para agir diretamente em um grupo de adolescentes, com o objetivo de, a partir da leitura compartilhada de textos literários, prepará-los para que eles próprios se tornassem mediadores em seus espaços escolares e comunitários. A convite de Christine Fontelles, me reunia semanalmente com estudantes do Ensino Médio para ler e comentar textos — de Monteiro Lobato a Machado de Assis, além de artigos críticos a respeito da importância da leitura.

Era no diálogo que eles se formavam leitores e se preparavam para então conduzir os grupos de leitura de sua escola, na efetivação do projeto “Jovens protagonistas”, do Instituto de Corresponsabilidade pela Educação — ICE, em um efeito multiplicador. É interessante pensar que, inicialmente voltado apenas para os alunos, o projeto foi ampliado para alcançar também a formação dos docentes, tamanha a estranheza e o desejo causado por uma atividade baseada unicamente na leitura.

Essas experiências reforçam a nossa convicção: a formação de leitores e de formadores de leitores faz-se possível no ato de ofertar caminhos e compartilhar escutas. Na soma das práticas e no acréscimo de novos percursos, os motes que regem o país podem se transformar.

Maíra Lacerda
Designer e ilustradora. Professora no Instituto de Artes e Comunicação Social da UFF, com doutorado em Design pela PUC-Rio. Prêmio de tese pelo Museu da Casa Brasileira. Pesquisa os livros para crianças e jovens e a formação visual do leitor no laboratório LINC-Design.
Nilma Lacerda

Escritora, tradutora, professora, recebeu os prêmios Jabuti, Rio, Brasília de Literatura Infantojuvenil, entre outros. Trabalhou em várias universidades públicas, é colaboradora da UFF. Exerce a crítica de literatura para crianças e Jovens e mantém um Diário de navegação da palavra escrita na América Latina.

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