Texto escrito em parceria com Maíra Lacerda
Desde o século 19, edições de contos de fadas e histórias clássicas compõem um imaginário que participa da formação de toda criança. São histórias repetidas e recontadas em diferentes cantos do mundo, geralmente acompanhadas de imagens que forram o caminho das gerações de leitores. Das histórias lidas ou ouvidas às ilustrações a acompanhá-las, tramas e traços são intrincados tecidos a constituir a base da formação da subjetividade.
Rui de Oliveira é um dos mais significativos formadores do imaginário das crianças brasileiras. Com atuação a partir dos anos 1970, o artista firma-se como autor de obra vigorosa, que bebe em fontes universais para representar nossa peculiaridade. A publicação recente de Rui de Oliveira — Contos de fadas e histórias clássicas, realizada pela Oficina Raquel, permite bem avaliar a dimensão de seu lugar na literatura e na ilustração brasileira. A edição bilíngue, possibilitada pelo financiamento coletivo, tem por objetivo, nas palavras da editora Raquel Menezes, documentar/preservar a história da ilustração no país, além de divulgar seus trabalhos no exterior.
No álbum de artista de projeto primoroso, a cargo de Raquel Matsushita, atende-se ao cuidado com a memória, na reunião de alguns trabalhos magistrais onde Rui se dedicou ao reconto por meio das imagens, e alcança-se a necessária homenagem ao artista. A editora ressalta o ilustrador como um construtor de mundos, hábil em trazer ao leitor um texto visual que redimensiona o verbal.
Reconhecido como mestre por toda uma geração, Rui projeta seu legado ao menos em três aspectos: o artista, o formador e o irradiador. Aluno que foi de Regina Yolanda Werneck, artista e educadora empenhada com o reconhecimento visual de uma cultura brasileira e sua expressão, Rui afirma esse conceito em seu desenho, expandindo-o também em direção às raízes europeias.
Com formação em instituições brasileiras, complementou estudos na Hungria, em ilustração e animação. O contato com o pensamento estético estrangeiro, durante um período significativo, intensifica em sua obra uma percepção singular de cenários e personagens que o tornam um dos mais ricos intérpretes visuais dos contos de fada, que traz para o cotidiano brasileiro imagens de narrativas tradicionais.
No recorte do autor para seleção das obras do álbum, intenção narrativa e apreciação individual investem no reconhecimento de prismas das palavras e portas para a criação de visões particulares. Preocupado em não condicionar o observador/ fruidor/ leitor a um estilo reconhecível, Rui privilegia a opção pelo “método de abordagem” e presta uma reverência à potência verbal:
Claro que em todas as imagens que criamos existirão sempre alguns dados, alguns elementos visuais imutáveis. É uma espécie de DNA do ilustrador. Mas, em qualquer circunstância, o texto literário será sempre a origem de tudo. É impossível ilustrar sem gostar de literatura.
A versatilidade de Rui, o manejo de diferentes técnicas e materiais com igual mestria, o domínio da expressão humana, visível nas faces e nos corpos de suas personagens — as mãos particularmente importantes, talvez porque com elas o homem transforma a vida, o artista transforma a página — pode fundamentar o estranhamento em relação à afirmativa. Como não reconhecer Rui de Oliveira pelo traço, por estas “impactantes” ilustrações que podem acender pesadelos e devaneios? Fiel às histórias que narra em imagens, fiel ao que ele é, poucos autores traduzem com sua especificidade a temporalidade e os fantasmas próprios à condição humana.
O apreciador deste álbum passeia por imagens em desordem narrativa, que possibilitam adentrar o imaginário do artista, suas impressões particulares de histórias recorrentes. Mas entre os detalhes do traço, por vezes bem definido com pintura aquarelada delicada, por vezes carregando ainda uma característica de esboço, onde é possível ver a trama traçada pelo lápis, Rui deixa “lacunas”, nas palavras de Matsushita, para que o leitor siga por caminhos subjetivos, pertencentes somente a si. Tais lacunas seriam então as responsáveis pelas “novas leituras para os textos”, na alusão de Paulo Condini, que assina o prefácio da edição.
A “verdade” das personagens revela-se no caráter expressionista, que traduz estados de alma e circunstâncias ambientais, que, junto às peripécias narrativas, permitem distinguir a menina Chapeuzinho Vermelho que vem pelo bosque, da jovem que vai se despindo e deixando a roupa pelo chão, da mulher que se deita na cama e é atacada pelo lobo. Fisionomia e corpo não são os mesmos nas três instâncias. Assim como a figura do lobo, às vezes mais homem outras mais animal, também a Fera se transforma imagem a imagem, com a figura bestial se humanizando fisicamente pelo contato com Bela, mesmo antes da metamorfose final.
O processo criativo de Rui se deixa conhecer pelos estudos disponíveis ao final do álbum, prática, aliás, já realizada em outros livros. Por meio da reprodução de rascunhos do artista, podemos observar a construção requintada de cenários, as diversas propostas de cenas e mesmo de letras para a composição de títulos manuscritos. A revelação e partilha de seu modus operandi alimentam o desejo de mais incursões por essas frestas, para desvendar o trabalho árduo e harmonioso que é o de contar histórias por meio de imagens.
Em sua condição de professor de universidades públicas por muitos anos, Rui teve papel fundamental na formação de significativa parte de nossos ilustradores e designers contemporâneos. Não são poucos aqueles que reconhecem o compartilhamento de saberes exercido pelo artista, particularmente o olhar crítico e apaixonado pelo ofício, ao qual não faltará a consciência pedagógica e política. Em entrevista concedida a uma das autoras em 2005, afirma:
O livro brasileiro para crianças não tem de se pautar por nenhuma experiência europeia: os europeus têm uma cultura de imagem muito grande […]. A imagem massificada que acontece em nosso chamado Terceiro Mundo exige que nossos livros tenham imagens que não sejam massificadas, porque um garoto europeu pode até ter o discernimento de separar uma imagem vulgar de uma não vulgar, mas o menino aqui dos trópicos, […] sem um projeto cultural de visita aos museus ou a exposições itinerantes, nem de receber livros de arte em suas bibliotecas escolares […], esses garotos precisam de anticorpos. Vejo o livro como um deles. Já que eles não têm acesso a nenhuma imagem que não seja a imagem vulgar, a imagem brutalizada, a imagem que chamo de escracho, acho que o ilustrador tem de fazer seu trabalho assentado numa cultura.
Este álbum, enquanto coletânea do trabalho do artista, nos mostra o último aspecto do legado de Rui, o irradiador. A obra do ilustrador propaga um imaginário em diferentes faces, espelhadas em prismas, propiciando ao leitor uma “ausculta do invisível”.