Então? Meu livro já vem?

A literatura não cura, não é uma terapia, mas como um produto do humano, carrega em si a vida e a morte, é uma expectativa do presente e do vindouro
Ilustração: Maíra Lacerda
01/08/2021

Texto escrito em parceria com Maíra Lacerda

Em 2 de abril último, dia Internacional do Livro Infantil, a escritora portuguesa Ana Pessoa publicou um texto no Facebook em que relata uma situação de internação hospitalar de seu bebê. Ao encerrar um dos procedimentos, a enfermeira se oferece para pegar o saco de brinquedos, inalcançável para a mãe com o filho ao colo, ligado aos tubos. E, “no meio dos legos e panelas, a ovelha e o crocodilo, de que o meu filho tanto gosta”, Ana escolheu um livro. “O meu filho acalma-se assim que vê a menina da capa. Senta-se […] a folhear o livro. A enfermeira pediátrica, sempre afetuosa, diz-me num tom complacente: ‘Ó mamã, o seu filho não precisa de livros com esta idade’. […] Olho para a enfermeira incrédula, mas a enfermeira olha agora para o meu filho de ano e meio e diz-lhe […]: ‘Os livros são para mais tarde, bebé. Para partires a cabeça a fazer trabalhos para a escola!’” Sem palavras, Ana pôs-se a refletir sobre os desencontros entre livros e não leitores.

Em situação semelhante, não houve, felizmente, quem dissesse para outra mãe: “Não leia este livro para sua filha, nessas circunstâncias”. Com sete anos, a menina fora internada com suspeita de meningite. Caso houvesse uma enfermeira, solícita como a anterior, a dizer coisas descabidas, a mãe teria um argumento imbatível: “Foi ela quem pediu. Conhece-o bem, já o lemos juntas”.

Uma terceira criança, internada em hospital infantil universitário, no Rio de Janeiro, pediu um livro na hora crítica em que a equipe médica se movimentava para intervir e procurar salvá-la, pois estava em período pós-transplante. A psicóloga que a atendia teve que se retirar do quarto, mas antes perguntou:

“Tem alguma coisa que eu possa fazer por você?”
A criança respondeu:
“Tem.”
“O quê?”
“Me traz um livro.”
“Que livro?”
“Uma história de índio.”

A bibliotecária do projeto Biblioteca Viva em Hospitais entregou Histórias de índio, de Daniel Munduruku, à psicóloga. Dias mais tarde, pediu o livro de volta, pois pertencia a um acervo público. A psicóloga disse que o livro, infelizmente, se perdera. A criança tinha pedido que lesse para ela, ela leu, leu e leu, a criança foi melhorando, equipe a postos meio embasbacada, vendo a criança se retomar, melhorar. Teve alta do hospital, levou o livro com ela.

Um hospital universitário, lugar de pesquisas, e deixaram que a criança fosse embora sem qualquer investigação da situação inusitada. A pergunta era visível: o que existiria em um livro de literatura, capaz de tocar assim um ser em limiar tão delicado? O que, entre páginas e leitores, caminha pela franja entre doença e saúde, vida e morte?

Palavras. Ilustrações. Textos, partilhando experiências aptas a ensinar o fado, diz Umberto Eco, em Sobre a literatura. Para o teórico, a literatura ensina a morrer. Se ensina a morrer, ensina a viver antes da morte. Ensina o sentido da vida, permitindo a escolha dos caminhos por onde andar.

O livro que o bebê de Ana escolheu, Alors?, título da versão francesa, de Kitty Crowther, trata da espera de brinquedos e bichos pelo menino que deve chegar em breve. “‘Então?’ (‘Alors?’) ‘Ele já chegou?’ A boneca vai dizendo: ‘Não, ainda não chegou!’, até ao momento em que todos ouvem um barulho e o menino entra de rompante pelo quarto adentro, onde é recebido em grande euforia pelos seus companheiros de brincadeira.” O pequeno leitor alcança a fruição do texto na condição de ouvinte da história que a mãe costumaria contar e, em contato com a imagem familiar, foi capaz de evocar uma cadeia narrativa e os sentidos que construiu.

O livro que a menina pediu para trazer de casa foi O sofá estampado, de Lygia Bojunga. Conta a história de Vítor, um tatu, apaixonado pela gata Dalva. Vítor é tímido e aprende a cavar terra adentro para sumir do mapa, quando não consegue lidar com a realidade. No momento em que soube que a avó que tanto amava tinha morrido assassinada, cavou tão fundo que reencontrou o estranho lugar, feito de silêncio e ausência, que visitara certa vez. Nesse lugar, encontra uma Mulher de mão muito fria, que o empurra, sem deixar ver o rosto, e o protagonista confere contorno para o inominável. O projeto gráfico e as ilustrações o acompanham nesse caminho. À sua própria maneira, a menina configurou também esse contorno enquanto viveu o pesadelo, que felizmente terminou rápido e bem; as palavras continuaram lá, na releitura que prosseguiu, acompanhando Vítor em sua jornada rumo ao amadurecimento.

O livro de Munduruku traz algumas crônicas, depoimentos e informações sobre os povos indígenas no Brasil, mas o primeiro texto é um conto: O menino que não sabia sonhar. Kaxi luta contra o destino anunciado: não se considera capaz de suceder o pajé, em sua tarefa de líder espiritual de um povo. Empreenderá, no entanto, a jornada solitária, na qual aprenderá a sonhar, embora aí esteja implicado o sofrimento inerente ao saber. Os belos desenhos a pastel ensejam ao leitor a visualização propícia à compreensão da tensão vivida pelo personagem.

Ao especificar o tipo de livro desejado, essa criança, que sabia estar próxima da morte, intuiu que nele poderia encontrar as palavras para auxiliá-la no trânsito difícil. Ficará esquecida da vida percorrendo caminhos obscuros, após o que poderá, como Kaxi, acordar pronta para seu destino. Ou não. Se perguntada, não saberia, provavelmente, manifestar com clareza a razão de querer um livro com uma história de índio; é possível que já tivesse ouvido a história, ali mesmo, no hospital, e fosse guiada pela beleza da narrativa ou pelas perguntas que deixou. Tantos possíveis, como na literatura. Tantas palavras, tantas imagens para dizer, para reconhecer, nomear, significar.

A literatura não cura, não é uma terapia; mas, como um produto do humano, carrega em si a vida e a morte. Depositário dessa experiência, o livro literário, mesmo quando se é bem pequeno, é uma expectativa do presente e do vindouro.

Maíra Lacerda
Designer e ilustradora. Professora no Instituto de Artes e Comunicação Social da UFF, com doutorado em Design pela PUC-Rio. Prêmio de tese pelo Museu da Casa Brasileira. Pesquisa os livros para crianças e jovens e a formação visual do leitor no laboratório LINC-Design.
Nilma Lacerda

Escritora, tradutora, professora, recebeu os prêmios Jabuti, Rio, Brasília de Literatura Infantojuvenil, entre outros. Trabalhou em várias universidades públicas, é colaboradora da UFF. Exerce a crítica de literatura para crianças e Jovens e mantém um Diário de navegação da palavra escrita na América Latina.

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