É livro para crianças? Mas é literatura?

Os dois grupos de objetos — livros para crianças e livros de literatura para crianças — conferem aconchego, prazer e experiência lúdica
Ilustração: Maíra Lacerda
01/03/2021

Texto escrito em parceria com Maíra Lacerda

Ana Maria Machado, e antes dela Cecília Meireles, há muito marca a distinção entre livros para crianças e literatura para crianças. No primeiro grupo, estão os livros produzidos com foco no brinquedo e na recreação, tanto quanto na dimensão do aprendizado da leitura e da escrita, além de outras propostas didáticas, envolvendo a transmissão de conteúdos básicos, em antecipação ou colaboração à educação infantil. “Aprendendo a contar”, “As vogais”, “Meu primeiro abecedário”, “As estações do ano”, “Meios de transporte”, “Animais da fazenda” são exemplos de títulos que se prestam à familiarização com os principais temas de um conhecimento geral a ser dominado na vida escolar.

Embora tenha sido o primeiro enfoque a ser explorado nesse nicho do mercado editorial, o aspecto utilitário modificou-se, conforme os movimentos da própria sociedade vieram a inserir a função estética nas leituras propostas ao público infantil. Perrault e os irmãos Grimm têm primazia na oferta de livros de literatura para crianças, ao recontar por escrito histórias transmitidas pela oralidade entre os camponeses, ainda que em Contos da mamãe gansa e Contos maravilhosos infantis e domésticos, as narrativas não dispensem o cunho pedagógico de um ensinamento moral. A marca essencial da literatura, dada pela consciência do humano, terá em Hans Christian Andersen o grande iniciador. Visionário, Andersen confiava em que a criança pudesse experimentar no texto as emoções narrativas e a fruição estética. Seus contos ocupavam-se em deleitar e comover, em vez de preparar e ensinar.

Em comum, esses dois grupos de objetos — livros para crianças e livros de literatura para crianças — conferem aconchego, prazer e experiência lúdica. Acompanhados de ilustrações e geralmente com projetos gráficos elaborados, que atraem olhos e mãos, ambos circulam igualmente nos espaços doméstico e escolar, e acabam muitas vezes por se misturar e se confundir entre si. A funcionalidade e a destinação tornam-se visões predominantes nesse universo, e os livros de literatura habitualmente enfrentam dificuldade de reconhecimento e depreciação de sua natureza. São livros para crianças, isto é, para passar conteúdos e divertir. Na visão de um senso comum, o caráter estético se perde e a literatura para crianças acaba vista como algo menor, na rasura de sua complexidade essencial. Em tal contexto, a escola pode agravar, e em geral o faz, esse equívoco fundamental.

No Brasil, criança, livro e escola formam um tripé de larga história, no qual se cruzam inserção social e empecilhos de fruição. Em face da desigualdade social, é somente na escola que grande parte da população brasileira tem acesso ao livro e às práticas que propicia. Na Educação Infantil, de forma geral, a experiência de leitura acontece por meio de atividades que privilegiam a ludicidade e a emoção, apesar da falta de formação específica dos profissionais muitas vezes afetar a devida apreciação do caráter literário. Todavia, conforme se avança no processo educativo, especialmente após a alfabetização, a leitura, e mais tarde a literatura, é inserida como exercício e disciplina. Esse processo, que atinge em especial o Ensino Fundamental II e o Ensino Médio, tem levado ao que é conceituado como escolarização do livro, processo que transforma a leitura de livros de literatura em prestação de contas de uma tarefa didática. Ler um livro para a escola, via de regra, pede exercício público e monológico, em vez de prática íntima e dialógica, como deveria ser. O sistema, em suas diversas ramificações, busca exercer controle e avaliação sobre o ato de ler, forma de sustentar o status quo.

Há exceções, e não serão poucas. Há docentes por todo o país que concedem a entrega entre livro e leitor, leitora e livro. Mantêm, em suas aulas, a insurgência básica da literatura. Não se lê literatura para agir como parte de um grupo de seguidores de tal ou qual ideia, para ter na repetição o porto seguro de suas ações. Ao contrário, a leitura literária é experimentada como indagação, revelações, mudança.

Definir literatura é, em si, uma tarefa que pede mobilidade, pois o termo ganha diversas significações ao longo da história. Compagnon, Candido, Bosi, Barthes ressaltam as dimensões de liberdade, de troca existencial e social. Essas balizas do texto literário, que em nada se limitam pela potencial destinação leitora, não costumam se submeter a ditames externos, entre os quais preconceitos e monitoramentos. Cecília Meireles já alertava, na década de 1950, para o cuidado de não subestimar o público infantil, na oferta de livros fáceis, em atenção a simplificações e receitas. O universo da criança é humano de forma plena, e tal fundamentação, dentre outros elementos, nos permite afirmar que A pequena Alice no país das maravilhas, de Lewis Carroll, Chapeuzinho Vermelho, de Perrault, Guilherme Augusto Araújo Fernandes, de Mem Fox, Hoje me sinto, de Madalena Moniz, são livros para crianças e são literatura.

Carroll realizou ele mesmo uma adaptação de sua obra para crianças de zero a 5 anos, afirmando no prefácio o desejo de ser objeto de afeto e manuseio por parte de bebês e crianças bem pequenas. Perrault e os camponeses, cujas narrativas orais eram por ele compiladas, não faziam distinção entre as idades de seus ouvintes ou leitores. O conto de Mem Fox expõe a deliciosa máquina da literatura para leitores de todas as idades, na diversidade de respostas possíveis a uma mesma pergunta, em ênfase à polissemia e à ressignificação.

Lemos literatura em indagação do sentido de nossa existência, da constituição do mundo em que vivemos, da viabilidade de outro mundo em decorrência de nossas ações. Ambiguidade e ambivalência, traços essenciais das pessoas e das situações, são apreendidas pelas crianças desde cedo. O pequenino personagem de Hoje me sinto mostra-se em variados ânimos, de audaz a Zzzz, passando por curioso, jupiteriano, sozinho, único, num percurso por todo o alfabeto. Em articulações primorosas dos planos verbal e visual, Madalena Moniz faz de um abecedário, em princípio destinado às crianças, uma obra poética, em rica percepção dos estados de espírito vivenciados com frequência e às vezes de forma contraditória por cada indivíduo, apontando para a falta de fixidez na vida. Clarice Lispector não faz diferente em suas narrativas para o público adulto, nem Cora Coralina ou Adélia Prado em seus poemas. O caráter estético é o ponto de distinção de suas obras, e não seus possíveis leitores.

Inúmeros depoimentos de autores e autoras ressaltam o fato de que a escrita para um público infantil ou juvenil não impõe esquemas ou limites preliminares. Não há, portanto, razão para o preconceito que subsiste e conduz, muitas vezes, à desvalorização dessa produção. Apesar de persistirem ruídos entre livro, criança, jovem e escola, clareia-se mais e mais a distinção entre obra literária e obra pedagógica e o espaço devido a cada uma delas.

Maíra Lacerda
Designer e ilustradora. Professora no Instituto de Artes e Comunicação Social da UFF, com doutorado em Design pela PUC-Rio. Prêmio de tese pelo Museu da Casa Brasileira. Pesquisa os livros para crianças e jovens e a formação visual do leitor no laboratório LINC-Design.
Nilma Lacerda

Escritora, tradutora, professora, recebeu os prêmios Jabuti, Rio, Brasília de Literatura Infantojuvenil, entre outros. Trabalhou em várias universidades públicas, é colaboradora da UFF. Exerce a crítica de literatura para crianças e Jovens e mantém um Diário de navegação da palavra escrita na América Latina.

Rascunho