Dois projetos, um Brasil

José de Alencar e Lygia Bojunga refletem sobre o ato de escrever e suas implicações para o imaginário de uma cultura
Ilustração: Maíra Lacerda
01/05/2023

Texto escrito em parceria com Maíra Lacerda

Quem não acompanhou a Raquel com suas vontades guardadas dentro de uma bolsa amarela? Quem não desceu com Peri ao fundo de um abismo para colher a flor ofertada à Ceci? Quem nunca percorreu um caminho até a casa da madrinha? Nunca entrou num dos bailes do império brasileiro com Aurélia e o marido comprado por ela? Leituras comuns no ambiente escolar, consideradas as condições específicas de tempo e lugar, as narrativas acima evocam um imaginário reconhecível na experiência da cultura brasileira. Antonio Candido, no magistral artigo Os três Alencares, revela o engajamento de José de Alencar com as questões do país recém-formado e a perspectiva de contemplar da forma mais ampla possível suas diversas facetas. Tem-se assim uma obra indianista, capaz de estabelecer, em espectro idealizador, um passado original e rasurado; uma criação histórica com marcos da colonização europeia e um Brasil Império, com foco na vida urbana, personalidades complexas e rígido código social, de base moral hipócrita que o autor busca, sem o conseguir inteiramente, colocar em xeque.

A concessão do prêmio Hans Christian Andersen a Lygia Bojunga, em 1982, faz sobressair a universalidade de personagens e tramas presentes em sua obra, ao mesmo tempo em que retrata situações tipicamente brasileiras. A autora não se furta aos aspectos mais difíceis da experiência humana, levando a narrativa à radicalidade de que fala Georges Bataille, indo à essência do que é ser humano e atingindo plenamente a comunicação com o leitor — marca da literatura. Ainda nas narrativas mais lúdicas, como A bolsa amarela, adentra discussões de gênero, sem, no entanto, fechar quaisquer outras portas, que poderão ser entrevistas a partir da emergência de novos discursos críticos.

Autora e autor, com públicos predominantes na infância e juventude, uma, na idade adulta, outro, empreenderam projetos literários da mais alta qualidade. Independentemente do público implícito, o valor estético das obras coloca ambos em um mesmo patamar de excelência e singularidade. Mas a questão que aqui nos interessa, ao conectá-los, é o fato de refletirem sobre o ato de escrever e suas implicações para o imaginário de uma cultura.

Com um projeto literário para corporificar no campo simbólico a nação recente, Alencar preocupa-se em afirmar não ter seguido modelos estrangeiros, mas atendido às experiências de infância, “ao atravessar as matas e sertões do norte, em jornada do Ceará à Bahia”, viagem que muito o impressionou e que se alia à rica imaginação de sua mãe. No entanto, da mesma forma que Bojunga, ele ressalta o valor da leitura em sua vida, por meio da vivência escolar e em função do cargo de ledor, que ocupava nos serões familiares. Bojunga encontra o apelo da leitura em Reinações de Narizinho, presenteado por um tio querido. A obra impregna o imaginário da criança que reservará sensibilidade ímpar para as demandas infantis.

A força da natureza, “esse livro secular e imenso”, a consciência de que o selvagem de O guarani é “um ideal, que o escritor intenta poetizar” destacam-se em Como e porque sou romancista, escrito em 1873, publicado de forma póstuma em 1893, e considerado pelo próprio Alencar sua autobiografia literária. As inquietações que o mobilizaram para a escrita mostram-se junto à busca incessante de uma forma narrativa que atendesse a seus desígnios e aos da nação. A queixa do desconhecimento pelos portugueses da produção literária brasileira e a célebre pergunta “Que país é este?”, que tanto eco encontra em nossa história, traduzem de maneira fidedigna a perplexidade ainda hoje presente acerca de nossas contradições.

Por esse caminho, com indagações que procuram responder à violenta desigualdade, à falta de memória, à violência estrutural, à educação precária e ao desprezo à arte, segue também Lygia Bojunga, que desde Os colegas tem contado com um público cativo para as narrativas de crianças ou jovens protagonistas que enfrentam situações de injustiça e desamor. Livro — um encontro com Lygia Bojunga Nunes, inicialmente um monólogo teatral, é publicado em 1988. Tal como Alencar, a autora desvela sua intensa relação com a leitura, elencando algumas de suas paixões textuais. Em continuidade ao processo de reflexão sobre seu projeto literário, Fazendo Ana Paz oferece um percurso com foco na criação da personagem. A hesitação que acompanha a escrita fica bem exposta na irrupção de cenas aparentemente aleatórias e mesmo de personagens identificadas pelo leitor como pertencentes a outras narrativas da autora. Ao final, mostra-se a personagem em sua completude e em texto lacunar, mas contundente, sobre memória, compreendida em sua dimensão existencial e histórica.

Fechando a trilogia, Paisagem avança em relação à teoria da escrita, em estupendo exercício metalinguístico. Em uma ficção sobre a ficção, a autora torna-se também personagem e, posta no enredo de forma ativa, teoriza sobre literatura, fazendo literatura à vista do leitor, também aí embrenhado como personagem. Revela-se a interação do leitor com a obra lida, em interessante discussão sobre o papel que ocupa no ato da leitura. A linha tênue entre realidade e invenção põe-se a nu, e a integração entre manifestações estéticas diversas é ressaltada como um dom da arte.

Na realização de uma obra artesanal, em uma era dominada pela tecnologia, Bojunga vive a experiência arrojada de levar a literatura ao patamar de Feito à mão, em publicação de cerca de 100 exemplares numerados. Ainda que logo em seguida saia uma edição industrial, a investida é fruto de uma autora ciente de seu ofício. Em época diferente e em polo oposto, Alencar produz movimento contrário. O folhetim publicado no Diário do Rio de Janeiro difundiu o romance de Peri e Ceci para um público diverso e múltiplo, alçando a obra do rodapé jornalístico a um lugar permanente na história da literatura brasileira. Lida no Rio de Janeiro, ao pé dos lampiões públicos por leitores alfabetizados que estendiam a analfabetos a condição de usuários da cultura escrita, ou enviada por portadores diversos a longínquos recantos do país, a narrativa de exaltação do indígena, em meio às vivências iniciais de nossa colonização, atende a uma expectativa do povo brasileiro de heroísmo e exuberância para as narrativas que fornecessem uma identidade brasileira. Identidade também necessária ao espaço urbano, bem representado pelo autor em seus perfis de mulher.

Um país que vê suas crianças e seus jovens com demandas críticas e propositivas, dispondo de coragem e lucidez para enfrentar desafios e adversidades, como as personagens de Bojunga, percorreu, desde Alencar, um bom caminho em termos de representação estética. Autora e autor deixam, a seu tempo, e em seu estilo, inigualáveis painéis da sociedade brasileira. Sem se furtar às questões polêmicas, investem na clareza da arte como mobilizadora de indagações e movimentos de mudança. Ao compartilhar o pensamento sobre o seu fazer artístico, deixam também um legado inestimável para a narrativa brasileira presente e futura.

Maíra Lacerda
Designer e ilustradora. Professora no Instituto de Artes e Comunicação Social da UFF, com doutorado em Design pela PUC-Rio. Prêmio de tese pelo Museu da Casa Brasileira. Pesquisa os livros para crianças e jovens e a formação visual do leitor no laboratório LINC-Design.
Nilma Lacerda

Escritora, tradutora, professora, recebeu os prêmios Jabuti, Rio, Brasília de Literatura Infantojuvenil, entre outros. Trabalhou em várias universidades públicas, é colaboradora da UFF. Exerce a crítica de literatura para crianças e Jovens e mantém um Diário de navegação da palavra escrita na América Latina.

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