Bibi: qual o lugar desse livro na estante?

O que delimita os gêneros literários? Quais as fronteiras entre eles? E o que estabelece o endereçamento a um leitor ou a outro?
Maíra Lacerda (colagem a partir de ilustrações de Gustavo Piqueira)
01/08/2024

Texto escrito em parceria com Maíra Lacerda

O que delimita o livro infantil? Qual a fronteira entre um livro infantil e um adulto? Seria o conteúdo? A forma? Com o objeto nas mãos, certas características físicas e materiais costumam responder com rapidez a isso. Livro com formato grande, “ilustrações multicoloridas e sorridentes, um texto curto em letra grande, não é mesmo?” — pergunta o narrador de Bibi, de Gustavo Piqueira, em meio a representações que refletem exatamente esse estereótipo, para imediatamente responder:

Você se enganou. Este não é um livro infantil. (…) Melhor então trocar isto aqui, né? Deixar com uma cara mais adequada ao Bibi. Mas sem perder a animação.

Bibi é Fabiano, pretenso protagonista da obra. E se ela começa por apresentá-lo, o tom logo muda, assim como o livro: seu papel, suas fontes tipográficas, suas cores e sua construção textual. Essa modificação constitui a própria temática do livro, que, em exercício metalinguístico, vai dialogando com o leitor.

Adulto, só que sem a parte chata. (…) Assim, mantemos as ilustrações divertidas, mas simulamos impressão em risografia. E, para realmente garantir que ninguém vai confundir com coisa de criança, também acrescentamos umas drogas, sexo… (…) Adicionemos também um punhado de rabiscos afetando “feiura”, alguns textos sublinhados, com hifenização mo ––– der ––– na. E pronto. Agora que Bibi está rodeado por uma estética con ––– tem ––– po ––– râ ––– nea, não há o menor perigo de classificarem isto aqui como um livro infantil.

A narrativa é organizada quase que inteiramente por meio das falas do narrador, que, após apresentar Fabiano e constatar seu sumiço, passa a questioná-lo sobre sua natureza e seu comportamento, em meio a um passeio pela contemporaneidade, em seus valores e sistemas. Nesse processo, Bibi — personagem —, por meio do olhar do narrador, se revela multifacetado, e Bibi — livro — expõe essa multiplicidade em sua composição material, que durante a leitura se apresenta em permanente mudança: de livro ilustrado infantil a livro ilustrado adulto, daí a romance e ainda mais. As alterações são tantas, que o próprio narrador propõe, então, a troca do título do livro, e na página seguinte é ofertado um cartão para encaixe na capa, transformando o objeto completamente, na remodelação de sua identidade e proposta.

Vamos trocar o título deste livro? Assim, recomeçamos pra valer. Porque, cá entre nós, “Bibi” não dá. Não combina. Nem com sua complexidade, nem comigo. (…) Então, me ajude. Destaque o título novo na página ao lado, encaixe-o na capa deste livro. E volte aqui, porque ainda não terminamos.

Conforme a narrativa e os questionamentos avançam, o personagem se transfigura, e o livro materializa essa operação, problematizando-se na criação de um híbrido, um objeto que a cada capítulo se transmuta completamente. Em meio a essa leitura, que nos envolve e nos desnorteia, encontramos em Bibi uma obra que obriga a revisão da teoria: mas, afinal, o que delimita os gêneros literários? Quais as fronteiras entre eles? E o que estabelece o endereçamento a um leitor ou a outro?

Neste espaço questionamos constantemente as definições usuais sobre literatura para crianças e jovens, que muitas vezes buscam avaliá-la como um campo à parte, devido ao público a que se destinam. Em termos de seu conteúdo, e com o caráter de literatura demarcado pela predominância da função estética, é sempre válido relembrarmos Cecília Meireles, para quem, já em 1949, o livro que uma criança lia com proveito caracterizava-se como tal. Dessa forma, seria a recepção em si — e não a recepção idealizada na produção —bb que iria delimitar o objeto. Mas, ainda de acordo com a poeta e educadora, é sempre bom cuidar de não se subestimar o público infantil, a partir da suposição de que a caracterização de um livro a ele destinado seria uma simples questão de estilo, sobretudo em termos de facilitação de linguagem e experiência, de forma a produzir livros fáceis, como se o mundo secreto da infância fosse, na verdade, tão fácil, tão simples…

Mas e o questionamento de forma levantado por Bibi? Como entra nessa equação? Imagens coloridas e materialidade diferenciada são características predominantes nos livros de literatura para crianças e jovens, como bem atesta o narrador logo no início da obra. Mas a potencialidade comunicativa da linguagem visual não é restrita a um público, ou pelo menos não deveria ser. A fruição de imagens, experiência contemporânea bastante intensa para todas as idades — vide cinema, fotografia e outras artes visuais —, quando se mostra em um livro acaba por determinar a classificação do objeto para a infância, em processo ainda repleto de preconceitos.

Vivemos um momento de inquietações, e essas determinações são razão de provocações e buscas, é verdade. Gustavo Piqueira aponta possibilidades menos convencionais, ao apresentar a narrativa ilustrada para adultos como o segundo formato em Bibi. Sempre em tom ácido e repleto de críticas, o autor explora ao extremo os estereótipos, diretamente mencionados e reproduzidos nas páginas do livro, para levar o leitor a refletir sobre clichês e congelamentos teóricos.

E se a profundidade do personagem se adensa no momento em que as imagens somem e o livro se apresenta em uma diagramação tradicional de romance, a imagem volta para trazer emoção e — por que não? — amor, na composição de uma fotonovela. Nesse ponto, a utilização da imagem como parte integrante da construção de uma narrativa impressa também é explorada em seu aspecto temporal, quando o narrador faz um apelo ao personagem: “Fabiano?! FABIANO!!! (…) Pare e seja mais contemporâneo, por favor”. Nesse momento, nova modificação e o livro de artista se apresenta. Imagens abstratas, palavras soltas na página, uma narrativa não linear subjetiva.

Em todo esse processo, a forma do livro — sua visualidade e materialidade — atua em consonância com o conteúdo, na convocação de significados leves e/ou densos. No colofão expandido, Italo Calvino é mencionado como referência chave em Bibi. Nesta terceira década do século 21, Piqueira toma parte do legado do autor e pensador italiano para fazê-lo presente no diálogo entre literatura e design. Faz de suas obras, de Clichês brasileiros a Seu Azul, de Lorde Creptum a Primeiras impressões, um permanente entrelugar. Aí, as perguntas se sucedem: e se uma criança pegar esse livro por sua capa de cor salmão, gravuras coloridas nas primeiras páginas? E se essas mesmas razões servirem a um adulto para não pegar esse livro? E se a criança encontrar deleite em uma narrativa inicialmente não pensada para ela? E se o adulto descobrir profundidade em um livro que também alcança proveitosamente jovens leitores ou suscita interesse infantil? Tomemos, por fim, as perguntas da quarta capa: o conteúdo define a forma? Ou é a forma que molda o conteúdo?

Se um viajante numa noite de inverno, de Calvino, desvela caminhos insólitos para os rumos da literatura no final do século 20, com base em interminável processo de indagação narrativa. E Bibi, a seu turno, não é um livro de respostas.

Maíra Lacerda
Designer e ilustradora. Professora no Instituto de Artes e Comunicação Social da UFF, com doutorado em Design pela PUC-Rio. Prêmio de tese pelo Museu da Casa Brasileira. Pesquisa os livros para crianças e jovens e a formação visual do leitor no laboratório LINC-Design.
Nilma Lacerda

Escritora, tradutora, professora, recebeu os prêmios Jabuti, Rio, Brasília de Literatura Infantojuvenil, entre outros. Trabalhou em várias universidades públicas, é colaboradora da UFF. Exerce a crítica de literatura para crianças e Jovens e mantém um Diário de navegação da palavra escrita na América Latina.

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