Texto escrito em parceria com Maíra Lacerda
Como fugir de falar sobre o Natal neste período? O ano já acabou, em dezembro o calendário é curto. A propaganda habitual toma conta do nosso cotidiano, sugere presentes, motivos para decoração e receitas culinárias. Ao organizar as comemorações, a lembrança da criança entra em cena, relembra os desejos passados, as cartas ingênuas dirigidas a uma figura mítica, e pode mesmo recitar um poema meio esquecido de Machado de Assis, mas muito lido na escola.
Nesse poema, a noite de Natal traz a um homem adulto o desejo de reproduzir num soneto as lembranças da infância por ocasião do mesmo período. Papel à frente, caneta na mão, tenta descrever as sensações do menino, feitas de música e encanto, mas as palavras não chegam e, ao fim da luta com a expressão, há apenas um único verso: “Mudaria o Natal ou mudei eu?”. O tempo passou e tornou incompatíveis entre si o olhar do menino de ontem e o do homem de hoje. O sentimento de perda, no entanto, terá agido sobre o adulto, não sobre a infância vivida. Se o poeta pedisse a qualquer criança à sua volta o que exigia de si, ela não teria dificuldade em representar a atmosfera de graça e júbilo envolvendo a todos.
Comemoração do Ocidente que se impôs como símbolo de renovação e confiança na humanidade, o Natal é um tempo da infância. Tempo de promessas pródigas, carregado de presentes e comidas típicas, a festa tem em si o penhor da esperança na compreensão entre as pessoas. É difícil, todavia, manter esses votos por tanto tempo — dois mil anos —, embora muita gente se empenhe por isso. Com tantas disparidades sociais, com a incessável eclosão de guerras, fica difícil acreditar na autenticidade desse compromisso.
Porém, uma verdade religiosa ou um mito não se abalam facilmente. Nas famílias que mantêm a tradição e dispõem de condições para comemorar o Natal, lá estarão os sapatos ao pé da árvore, as meias penduradas na bancada da lareira ou outras formas de as crianças esperarem por sua parte nessa dádiva. Na manhã natalina, dentre brinquedos e outros objetos a serem encontrados nesses recipientes, caberá um livro? Alguns livros, pode ser? Mas o que é um livro, para além desse objeto a que estamos acostumados e que possui papel inconteste na história da humanidade?
Tal qual um infante que fala muitas línguas – ao experimentar sons, imaginar amigos e inventar linguagens ao sabor da criação de mundos pessoais —, o livro, ao trazer uma informação, uma narrativa ou um poema, oferece também um resumo do humano. Palavras e imagens conjugam-se em materialidade para assegurar a consciência do que somos, fomos, poderemos ser. Em atenção a cada idade, o livro — mesmo nas transformações de formato com que convivemos — viabiliza um trajeto pessoal determinado por quem lê e constrói assim uma experiência. Os livros literários são os que ofertam a mais radical dessas experiências. Viver não se resolve nos conhecimentos presentes nos livros didáticos ou informativos, ainda que tenham muito a oferecer. É a literatura, conforme nos ensina Barthes, essa “trapaça salutar, […] no esplendor de uma revolução permanente da linguagem”, que se presta a dar conta do real, embora saibamos ser essa uma tarefa impossível. Tornar o incompreensível do humano um pouco mais próximo da leitora e do leitor é seguramente uma das tarefas da literatura.
Se não estamos aqui (apenas) para, mais uma vez, elogiar o livro e a literatura, especialmente aquela destinada a crianças e jovens, buscamos o diálogo para esclarecer se esse objeto, o livro, e a experiência literária podem (ainda) configurar o incontável, o incontinente. A confiança de Italo Calvino no porvir da literatura — “há coisas que só ela com seus meios específicos pode nos dar” — engendra perguntas. Podemos confirmar a posição de que nos livros encontra-se uma síntese do que é a humanidade? Pensamos em O menino do pijama listrado, de John Boyne. Um retrato, também? Lygia Bojunga, em A bolsa amarela. Ou, ainda, uma condição? Onde vivem os monstros, de Maurice Sendak, e Migrantes, de Issa Watanabe.
No quadro das incontáveis narrativas sobre os efeitos do nazifascismo na primeira metade do século 20, O menino do pijama listrado sintetiza a divisão das pessoas entre perseguidas e perseguidoras, estando entregue ao puro arbítrio do poder os fatores determinantes de uma ou outra condição. Síntese da história, inserida no quadro das grandes indagações da humanidade, a narrativa prepara o jovem leitor para a obra-prima de Primo Levi É isto um homem?
Arbítrio de ordem semelhante determina as condições de vida de Raquel, a personagem presente na formação da subjetividade de toda uma geração no Brasil. A força do patriarcalismo, a rígida atribuição das funções aos gêneros, as amarras das condições sociais excludentes estão estampadas no retrato de um tempo e de uma menina, cujos desejos e imaginário, pulsantes dentro de uma bolsa amarela, levam-na a importantes ressignificações.
Parte iniludível do ser humano, o lado selvagem mostra-se sempre a ponto de despertar. Uma contrariedade, ou condições extremas, podem colocar em ação o monstro de cada um. Sendak explora muito bem tal condição, valendo-se de convenientes metáforas que assegurem ao pequeno Max a exploração do obscuro e o retorno à claridade. Em Migrantes, as imagens de Watanabe espelham os limites da exclusão na viagem pela noite escura dos expatriados, rumo a um possível sol.
Ao revisar, nessas obras, a força de transmissão do humano, não é de estranhar a confiança de Calvino na permanência da literatura pelo milênio que estava prestes a se inaugurar. Haveria algo a acrescentar às suas conhecidas observações, passadas quase três décadas do tempo anunciado?
A vida é medida pelo tempo. Todos os eventos, do nascimento à morte, do germinar ao apodrecer, ocorrem na esfera do tempo. Ler é atividade que requer fatias generosas de tempo. Porém, no presente, tempo e espaço vêm sendo comprimidos de forma cada vez mais singular, reprimindo em grande parte nesse processo a própria experiência humana. Condensar atividades para ganhar tempo tem sido uma tônica comportamental. Assistir ao filme ou ver os conteúdos que sumarizam e comentam a narrativa em vez de ler o livro, por exemplo. Sem discutir a riqueza que o trânsito entre as mídias proporciona, ignorar o tempo como escultor da reflexão humana anuncia uma opção equivocada.
Pede tempo, o ato de ler. Pede tempo, a experiência de passear pelo humano, colecionar perguntas sobre essa condição. “Mudaria o Natal ou mudei eu?” Reservar o espaço do livro nessa festa será uma forma de permitir a conciliação entre os tempos, em geral tão desejada? Podem as mil línguas expressas nas infâncias e o objeto que lhes dá abrigo ajudar a traduzir brandas visões de futuro em que a paz, a convivência solidária e o amparo sólido em nossa imprevisível condição correspondam aos anseios da expressão “Feliz Natal”?