A trajetória de Ana Maria Machado na literatura brasileira é longa, fecunda, múltipla. Formou gerações de leitores e leitoras, que, atingida a idade adulta, encontraram a autora à espera delas, com obras diversas, mas sem abandonar a visão de mundo a que estavam acostumadas. Pois ela começou propondo a vida meio ao contrário, sem as marcações de um script prévio. Trouxe para seus textos as posições do feminismo, ocupou-se em discutir a questão racial, distribuiu formas de enfrentar e vencer os tiranos. Em seus textos, a utopia mostra-se viável, na força de atitudes simples, fundamentais para novas formas de ser e estar no mundo. A perspectiva de convivência harmônica, não predatória do humano em relação aos demais seres, instaura-se como um projeto laborioso, no qual a escritora aposta com convicção.
Autora de algumas das obras-primas de nossa literatura, Ana Maria Machado professa abertamente sua confiança na palavra. Palavra escrita, palavra oral, a chegar por vozes de origens variadas, como o Preto Velho, em Raul da ferrugem azul, ou o avô de Luana, em Mandingas da ilha Quilomba, ou ainda a voz de um pequeno pássaro em Ah! Cambaxirra, se eu pudesse. Cruzam-se, neste ponto, as vozes das personagens e da autora em sua autobiografia, Esta força estranha: “E sem cessar, tinha fé na palavra, em seu valor criador de novas situações e na importância da herança cultural”.
A palavra é posta em seu potencial de expressão, atendendo à reivindicação, ao desejo, ao protesto, ao sonho. A fabulação de realidades possíveis, sem dominadores ou dominados, amedrontadores e amedrontados, assegura-se nessa força e na coragem para dizer, ou cantar. Por meio da palavra, rompem-se as fronteiras entre real e imaginário, para fazer confluir esses territórios, que todo sistema de controle humano quer manter bem separados. Misturá-los é perigoso, leva à mentira, à doença, à arte. Arte que propicia a circulação de ideias novas, de liberdade. Chico Buarque era um dos compositores e cantores na mira do poder, na ditadura civil-militar dos anos 1970 e seguintes. Ele e seu boi voador que
— É fora, é fora, é fora, é fora, é fora da lei, é fora do ar…
É fora, é fora, é fora, segura esse boi, é proibido voar.
O boi voador estava na mira da ditadura. Ana Maria trabalha de forma magistral a síntese do que são as ditaduras: a impossibilidade de outras palavras que não aquelas determinadas pelo poder. O discurso da verdade única, como diz o argentino Ricardo Piglia. A narrativa em que o menino Pedro tem como amigo um boi que voa, semelhante à miniatura de Bumba-meu-boi que há na sala da tia, expõe os diversos níveis de fantasia de cada um dos membros da família, nos quais não cabe a percepção do significado trazido pelo menino, em ruptura com a lógica racional. O boi é o amigo, o melhor fazedor de gols, o ser livre e festivo, que entra pela janela voando, e, tomando do prato de cada um a devida porção, compõe a refeição do coletivo. É o companheiro, na força e na voz do povo, revelação de que a cultura popular de solidariedade e resistência pode vencer os tiranos instalados no poder. Em O menino Pedro e seu boi voador torna-se claro que só a fantasia de vencer o tirano pode vencer o tirano.
Na obra de Ana Maria, os déspotas são vencidos, o povo descobre a força, que chega com frequência por via dos pequenos, como nos contos clássicos ou nas narrativas de Andersen. Sem os medos e preconceitos que os adultos carregam, as crianças podem enunciar livremente as suas verdades: “— Cala a boca já morreu. Quem manda em mim sou eu”. Tema recorrente para a autora é o autoconhecimento, ligado de forma direta à ancestralidade e à cultura, percurso dos clássicos Bem do seu tamanho e Bisa Bia, bisa Bel. A relação direta entre identidade pessoal e cultural é exibida na história de Helena, menina que ora é grande demais, ora pequena de menos:
Na hora de ir ajudar no trabalho da roça, ela já era bem grande. Na hora de ir tomar banho no rio e nadar no lugar mais fundo, ela ainda era muito pequena.
Para saber qual o seu verdadeiro tamanho, sai com o inseparável Boi de Mamão, o brinquedo de todos os dias, em uma viagem pelos ditos e não ditos da cultura, na qual vem a conhecer, dentre outros companheiros, o menino Tipiti e o espantalho Pé da Letra. Explorada em sua arbitrariedade e em seu vigor lúdico, a linguagem possibilita o entendimento de que contrários e paradoxos podem coexistir, e, como seu companheiro, verde hoje, maduro amanhã, Helena pode ser, nas palavras de Tipiti:
Eu não sou um retratista
Mas sou amigo de Helena
E ela é sempre forte e grande
Quando não é bem pequena.
A palavra gira sobre si e oferece prismas diferentes para situações semelhantes. Da mesma forma, a descoberta da menina Isabel, ao encontrar um retrato da bisavó Beatriz quando era do tamanho dela. Surpresa com o fato de que a mãe da avó um dia foi menina, passa a carregar o retrato consigo até se dar conta de que ele impregnou-se em sua pele, feito tatuagem. Mais espantada ficará ao dar-se conta de que, por sua vez, é a bisavó de uma menina vinda do futuro para discutir crenças e práticas com ela, da mesma forma que ela discutia com sua mãe sobre o tempo da bisavó. Uma trança de gente, é como Isabel vai destrinchar essa situação. Os conceitos vivos de ancestralidade e pertencimento atravessam a História humana, no percurso de construção do legado.
Empenhada na transmissão desse legado, a escritora nutre a memória cultural, fazendo do reconto uma das linhas de força de sua narrativa. Histórias da tradição oral ou escrita são por ela retomadas para que não se apaguem da cultura, mas para, igualmente, entrelaçarem culturas entre si, propiciando o conhecimento do outro e mesmo, como em O canto da praça, os deslocamentos no tempo, capaz de produzir um entendimento mais harmônico do mundo. A intertextualidade, que pratica com plena consciência, chama ao diálogo outras vozes da literatura, no espírito de que a fala de um retoma parte da fala do outro e a ela se acrescenta. Lobato, Cecília Meireles, Bartolomeu Campos de Queirós, Chico Buarque, Caetano Veloso, Shakespeare, Andersen e as vozes do povo fazem-se presentes na voz de Ana.
Encarando as mazelas da história, discutindo os desdobramentos das práticas escravizantes do passado na sociedade contemporânea, os efeitos perversos dos sistemas totalitários, Ana Maria Machado tem na palavra o condão — o presente, a doação — de suas personagens a quem a lê. Prêmio Andersen de Literatura em 2000, sabe que a literatura não salva nada nem ninguém, mas permite fazer perguntas, indagando da História como se escreveram aquelas linhas e não outras. Sabe que a arte é patrimônio imprescindível do humano, a dádiva de que fala Lewis Hyde. Ou o condão que permite à varinha das fadas a fecundação dos sonhos.