“A personagem de um romance representa a possibilidade de adesão afetiva e intelectual do leitor, pelos mecanismos de identificação, projeção, transferência. A personagem vive o enredo e as ideias, e os torna vivos.”A frase poderia ser do psicanalista Sigmund Freud, mas é do professor e crítico literário Antonio Candido. A mim, que me interesso tanto por psicanálise quanto por literatura, é um tema de interesse inesgotável. A cada leitura, em cada momento histórico, observamos fenômenos de identificação, projeção e transferência que são de ordem coletiva. Ou seja, os mesmos livros ressoam de forma se não idêntica, porque isso nunca, muito parecidas entre leitores diferentes.
Pensemos nas tais febres literárias: a leitura de Madame Bovary (1856) causou tanto furor que o autor chegou a ser processado por atentado aos bons costumes, porque a clássica cena em que Gustave Flaubert descreve um passeio de carruagem em que imaginamos o que pode estar se passando no seu interior é tão realista, tão bem-sucedida em nos capturar, que quase nos esquecemos de que se trata de ficção. A maestria do manejo da palavra escrita incomodou de tal forma que o autor precisou responder juridicamente por isso, lembrando-nos a potência da literatura e do uso da palavra para criar mundos.
O mesmo romance inspirou o termo “bovarismo”, criado pelo filósofo Jules de Gaultier, que hoje habita dicionários de psicologia e foi alçado ao vocabulário comum. Segundo o dicionário Michaelis, o bovarismo é a “inclinação romanesca para emprestar a si mesmo uma personagem fictícia ou sofisticada, que se aparta da verdadeira natureza”. Por extensão, é a “capacidade ilusória que o ser humano apresenta em se idealizar diferente do que realmente é”. Gosto muito desse exemplo emblemático, porque demonstra o quanto a literatura pode tocar, efetivamente, a vida. Que certas combinações de palavras têm um poder alquímico, de produzir realidade, ou uma experiência de realidade.
Pode acontecer também que, ao longo da leitura de um romance, comecemos a odiar profundamente uma personagem e esse sentimento perdure mesmo quando chegamos à última página. Pensemos no caso de Lolita (1955), de Vladimir Nabokov, em que o narrador da história, Humbert Humbert, um professor de meia-idade, vai descrevendo sua obsessão pela personagem-título, uma menina que está apenas entrando na adolescência. Ainda que seja lindamente escrito, considerado um clássico literário do século 20, há pouco tempo inspirou um debate em que um dos lados pedia a censura da obra, como se fosse o caso de apologia ao abuso.
Mas há casos de personagens que amamos odiar. Pensando apenas em obras publicadas no século 21, começo com uma das personagens mais citadas quando o tema vem à tona: Nino Sarratore, de A amiga genial, a tetralogia napolitana de Elena Ferrante, publicada no Brasil pela Biblioteca Azul, selo da Globo Livros. A assistente social e livreira Camilla Dias, que, entre outras atividades, medeia clubes de leitura, conta uma experiência muito particular com a obra-prima de Ferrante: no dia do encontro em que a discutiriam, que ocorreu presencialmente, antes da pandemia, uma das pessoas que se reuniram levou uma espécie de boneco-vodu com os traços de Nino e todas as outras ficaram contentes em participar da dinâmica de espetá-lo com alfinetes. Claro que uma parte levada pela brincadeira, mas imaginem a comoção que uma personagem é capaz de causar a ponto de fazer um encontro de clube de leitura se parecer com um ritual de bruxaria.
Nino também inspirou a criação de um site divertido, em inglês, chamado Fuck Nino Sarratore. Nesse tumblr, a autora compartilha trechos da tetralogia e os responde, fervorosamente. Logo na apresentação, diz assim (minha tradução): “Elena Greco é uma deusa brilhante que não precisa justificar suas escolhas para ninguém. Mas Nino Sarratore? Pô, foda-se esse cara”. Nas aulas e outras atividades em que falo de Ferrante, que inspirou meu livro publicado há dois anos pela Claraboia (Elena Ferrante: uma longa experiência de ausência), temos mil e setecentas páginas com inúmeros assuntos a explorar, mas é inevitável que ele apareça. Dizem que Ferrante conseguiu sintetizar literariamente o tal “esquerdomacho”, alguém que no discurso se apresenta como simpatizante e defensor das causas das minorias políticas, mas na ação, bem, digamos que não seja tão coerente assim. Também o chamam de “feministo”, uma ironia semântica que se auto explica, e “boy lixo” — a versão que mais gosto italianiza a expressão recorrente no vocabulário comum para “cherno bambino”. Nino seria mais do que um lixo, seria radioativo.
Outra personagem que amamos odiar é Amy Dunne, uma das protagonistas de Garota exemplar (2014), romance de Gillian Flynn publicado no Brasil pela Intrínseca. Amy é dissimulada, manipuladora, brilhante — e criminosa em diversos níveis. Mas mesmo assim, enquanto lemos, não conseguimos deixar de simpatizar com ela. Quem somos nós que compactuamos com tantos crimes, seduzidos pelo senso de humor e pela inteligência de Amy? Quem somos nós que muitas vezes a preferimos do que Nick Dunne, seu marido, um babaca completo, mas que ao menos respeita alguns limites legais? Diferentemente do que acontece com Nino, nosso ódio por Amy é tão fraco que chegamos a sentir empatia por ela. Claro, mérito de Flynn, que conduz o enredo com absoluta segurança e criou monólogos maravilhosos, que já permeiam a cultura popular, como o que deu origem ao protótipo da cool girl, a garota legal, a garota descolada, a garota que não existe e que quantas vezes nos sentimos pressionadas a ser. Amy foi tão convincente no papel e Nick tão alienado que acabou se casando com uma psicopata e depois teve que arcar com as consequências, principalmente quando deixa de jogar o jogo e passa a se comportar como um marido genérico: ausente, desleal, mentiroso.
Outra autora contemporânea mestre em criar personagens detestáveis é Ariana Harwicz, publicada no Brasil pela Instante. Se já foi difícil viver dentro da cabeça das personagens da chamada “trilogia da paixão”, que diferentemente da tetralogia de Ferrante, é composta por três romances completamente autônomos — Morra, amor (2012), A débil mental (2014) e Precoce (2015) —, o seu novo romance, Degenerado (2019), apresenta desafios ainda maiores, de embrulhar os estômagos mais sensíveis. Faz Lolita quase parecer um conto de fadas. Ler Harwicz com prazer é para os sádicos, ou para os masoquistas.
Por último, não poderia deixar de mencionar o romance-sensação do momento, A pediatra (2021), da ótima Andrea del Fuego, publicado pela Companhia das Letras, que tem uma protagonista que, nas redes sociais, estão amando odiar: Cecília, uma pediatra nada afeita a pessoas em geral, incluindo seus pacientes. É um enredo aparentemente simples, uma história de personagem, que depende integralmente da frieza e da antipatia sob medida, construída meticulosamente pela autora. Talvez por ser tão diferente da maioria de nós, Cecília cause espanto e nos fascine.
Em defesa da literatura, contra qualquer censura, desejo que esses livros e essas personagens continuem existindo. Que possamos debater essas obras criticamente, mas que jamais nos deixemos convencer de que a literatura deve seguir qualquer manual de boas maneiras.