Para a minha avó

Lembranças de uma mulher que era um poço de eletricidade, pequena, magra, ágil e amorosa
Ilustração: Sumaya Fagury
02/08/2022

“É diferente estar quase morta do que estar morta mesmo. É diferente, e só sei disso agora que ela morreu.” A frase é da escritora Noemi Jaffe, em Lili, novela de um luto, um relato de inspiração autobiográfica em que a autora narra o tempo mais agudo que se seguiu à morte da mãe. Diante da absurda constatação que a morte existe para nós e para as pessoas que amamos, a cultura ocidental achou por bem recalcar o tema.

Para onde vamos e para onde vão as pessoas que amamos, que ainda ontem estavam aqui, muitas vezes se refestelando na vida, repletas de energia e problemas e sonhos que também não existem mais? Muitas religiões têm respostas e, às vezes, é tão reconfortante ouvi-las. A convicção que me falta e está lá.

Há as pessoas que vão desaparecendo devagar, definhando aos poucos. No romance Eliete: a vida normal, da portuguesa Dulce Maria Cardoso, a autora escreve: “A cabeça e o corpo da avó estavam a morrer, qualquer pessoa podia ver isso, só que a cabeça estava a morrer mais depressa do que o corpo e, se isso não magoava o corpo da avó, magoava o meu”.

Enquanto escrevo esse texto, faz um mês que perdi minha avó materna, aos 92 anos. Ela teve uma vida longa para os padrões estatísticos, uma vida longa e rica. Fez muitas amizades. Teve uma filha, minha mãe, e um tio, que me deu primos amados, com quem cresci tão misturada que não saberia dizer qual foi a minha infância e qual foi a deles. Compartilhávamos os mesmos avós, Dalva e Walther, compartilhávamos as mesmas férias, as mesmas brincadeiras, o mesmo vocabulário afetivo. Vivíamos a 800 quilômetros de distância e, ainda assim, éramos como irmãos. Por cerca de quatro meses do ano, estávamos todos juntos, nas férias escolares de julho e, depois, nas de dezembro a fevereiro, que às vezes se estendiam até março, dependendo do calendário escolar. Passamos inúmeros natais e anos-novos juntos, algumas viagens e carnavais, muitas aventuras que só faziam sentido para a gente. E isso só foi possível porque meus avós eram um alicerce sólido e uma fonte inesgotável de disponibilidade, interesse e amor.

Ainda na infância, meus pais começaram a construir uma casa espaçosa, a nossa primeira casa, e como eram médicos com vidas profissionais exigentes, meus avós vieram morar conosco e dividiram com ambos parte da maternidade e da paternidade. Tínhamos sorte, minha irmã e eu, embora às vezes também fosse confuso. É como se naquela casa houvesse mais mães e pais do que filhas. Estávamos sempre amparadas.

Minha avó acabava fazendo um pouco de tudo, e sempre preferiu fazer as coisas à sua maneira. Cozinhar, por exemplo, era tarefa dela. Eu, que desde pequena tinha dificuldade de comer carne, ia até a cozinha e pedia a ela, por favor, que deixasse o meu bife o mais achatado possível, e também o mais tostado, para que a textura não me lembrasse da vaca que havia morrido para estar no meu prato. Carnívora como ela era, ainda assim, nunca tentou me convencer do contrário, e eu esticava os pés para acompanhar o que se passava na bancava. Ela fazia exatamente o que eu pedia. Eu também tinha que comer verduras como as outras crianças. A carne não era a minha única dificuldade alimentar, e todas eram levadas em consideração pela minha avó como assunto sério.

A minha avó sempre enxergou a minha dor e sempre a acolheu. Dizia que eu tinha um “coração de ouro”, o que talvez fosse uma forma de dizer que era uma criança sensível, que me tornei uma adulta sensível, e virava uma fera se sentia que qualquer pessoa abusasse da minha boa fé. Ao mesmo tempo, sempre me tratou como uma amiga, nunca com condescendência, e por isso conseguíamos falar de todas as coisas. Talvez enxergasse também a minha força e vivia dizendo que sentia orgulho, nas palavras dela, da minha inteligência, da minha imaginação e da minha habilidade com a palavra escrita. O olhar generoso e confiante de uma avó. Acho que herdei dela o talento, se é que posso chamar assim, de ouvir, ler, ver e contar histórias. No lugar das peripécias que encontrávamos nos livros habituais, ela inventava tudo, do começo ao fim, e eram sempre histórias singelas, lentas, ricas de detalhes, histórias perfeitas para que uma menina angustiada com a noite conseguisse entrar em outros mundos e adormecer. Ainda posso ver uma moça bonita sentada em seu vestido leve de verão cor verde água e um chapéu amarrado na cabeça por uma fita da mesma cor, com um laço logo abaixo do queixo, sob uma árvore frondosa, talvez um chorão, num jardim vasto cheio de outras plantas, talvez às margens de um lago. Já meu pai contava as histórias mais engraçadas e escatológicas: criou um personagem chamado Babacurso, um urso ingênuo, mas muito grande, desastrado e comilão, que vivia fazendo estragos por onde passava, e acabava salvando a floresta, involuntariamente, com seu funcionamento intestinal particular, com seu bafo devastador. Nos dias de Babacurso, os palavrões pululavam, e minha irmã e eu fechávamos a porta do quarto, como se entrássemos em uma sessão secreta da qual os outros adultos não podiam participar, sob pena de censura. Mas a verdade é que todos sabiam divertidos o que acontecia lá dentro. Entre as histórias bucólicas de vovó e os contos besteirentos de papai, crescemos assim, minha irmã e eu, com nossa própria costura de referências.

Contemplação e humor
Quando fui alfabetizada, passei a escrever livrinhos e depois algumas crônicas e contos, passando um pouco mais tarde para romances de gaveta. Fui percebendo, aos poucos, que tudo começou ali, nas histórias que aqueles adultos nos contavam com tanta habilidade, excelentes narradores que eram, complementares em temas e estilos. Eles não podiam saber à época, mas em conjunto estavam nos preparando para viver nesse mundo tantas vezes sem sentido, nesse mundo em que construímos sentido à medida que contamos uma história. Vovó Dalva me ensinou a arte da contemplação. Papai, a arte do humor. Dois instrumentos valiosos para sobreviver a toda sorte de desafios que viríamos enfrentar, conforme crescíamos e nos tornávamos adultas.

Nas noites em que eu sentia mais medo, era ao quarto dos meus avós a que eu recorria. Vovô Walther, metódico como era, dormia cedo e a essa altura já estava no sétimo sono. O homem esbelto, elegante e delicado do dia a dia se transformava num roncador profissional, com intervalos regulares, e picos altíssimos. Aquela sinfonia me acalmava: saber com o que podia contar, que o silêncio era sempre temporário, que logo viria o estrondo, eu ia entrando em ressonância e adormecia. Era a única neta que gostava do ronco do vovô. Minha avó e eu compartilhávamos essa intimidade sem mencioná-lo, como se fosse um grilo tagarela, um coaxar de sapo, o canto de uma cigarra, outros sons tão comuns à minha infância numa cidade pequena de Minas Gerais. Eu batia à porta e ela, sempre a última a dormir e a primeira a acordar — um poço de eletricidade, pequena, magra e ágil — abria. Havia muito drama, muita intensidade, sempre. Mas comigo, comigo ela não brigava. Comigo, ela era de uma delicadeza, de um cuidado, de uma adoração. Eu dizia: vovó, eu te amo. E ela me respondia: e eu, te adoro. Eu perguntava então, desapontada, porque ela não me amava de volta e ela me dizia que, no seu dicionário, adorar era muito mais, era além de amar. Fui entendendo com o tempo e hoje sei exatamente o que quer dizer. Minha avó me adorava. Ela me chamava de “meu biscuit” e de “minha santa”. O “meu biscuit” sei que é porque quando nasci, e ela me conheceu na maternidade, ficou encantada, como se eu fosse uma daquelas miniaturas de porcelana. O “minha santa” eu nunca entendi, mas sabia que não vinha de uma idealização católica — o que ela era, muito. Vinha da tal adoração. Como se assim, sendo a santa dela, fosse permitido me amar da forma que ela me amava, como se assim não fosse uma heresia. Quando eu batia à porta, e podia ser tarde da noite, ela sempre abria, pegava um colchão azul que guardava embaixo da cama, enquanto eu entrava com meu travesseiro. Ela me cobria com lençol e um cobertor fino e amarelo. Nas noites mais frias, também com um edredom. Como eu gostaria de me lembrar de cada detalhe, como eu gostaria de estar naquele quarto hoje, enquanto escrevo esse texto, escutando o ronco do vovô — a vida dele vibrando — e cochichando com a vovó, enquanto ela me acolhia. Eu perguntava se ela não sentia medo e ela não me dizia que fantasmas não existiam, ela não me dizia que não havia razão para ter medo. Ela me dizia que sim, também tinha medo, mas agora estávamos juntas. E eu me sentia acompanhada, compreendida e, assim, logo adormecia.

Sempre tive uma fantasia de que, quando ela morresse, eu estaria com ela. No momento exato da passagem. Como ela esteve por mim, de tantas outras formas, em todos esses anos. Não como uma dívida, e sim como um desejo. Éramos tão ligadas, nos compreendíamos tanto, que tinha a sensação de que seria eu a segurar a mão dela na despedida. Mas não foi assim que aconteceu. Minha avó ficou viúva, depois de seis décadas de um casamento que sempre nos inspirou, e reagiu a isso com a fibra que sempre teve, com o pragmatismo que sempre teve, e que tantas vezes me falta. E então, aos 88 anos, ela mudou de cidade para estar mais perto dos meus primos e de seus primeiros bisnetos — que, como nós, também a adoravam.

Até pouco antes de morrer, ela estava completamente lúcida e relativamente saudável para uma mulher de 92 anos. Muito ativa e cheia de opiniões, o que muitas vezes nos dava bastante trabalho, porque para que ela concordasse em seguir um tratamento médico, ou em ter ajuda de uma cuidadora para coisas mínimas, era sempre uma batalha. Minha avó prezava por autonomia, e foi assim até o fim.

Um gato
Nos últimos meses, eu senti que ela estava indo embora. Ela teve um gato que adorava, e com quem viveu por treze anos, um gato lindo e velho como ela, e quando percebeu que não poderia mais cuidar dele da mesma forma, me pediu para fazer isso, com o coração partido. Meu marido e eu o acolhemos imediatamente, e ele viveu mais dois anos com a gente e com as nossas gatas, um período de harmonia como poucos que experimentamos. Morreu meses antes dela. Tê-lo aqui não foi um ônus de forma alguma: compartilhar esse gato com a minha avó, compartilhar o amor que sentimos por ele, conhecê-lo na intimidade como apenas nós conhecíamos, foi uma maneira de estarmos juntas mais uma vez. Ele foi perfeito em cada dia que existiu.

Depois disso, ela passou a ver um gato que vinha visitá-la de vez em quando. Fiz perguntas cuidadosas e descobri que ela mesma sabia que não era um gato real, nenhum gato concreto que conseguia escalar até o seu apartamento, atravessar a tela, entrar e sair como bem queria. Ela sabia que era um gato diferente. Uma espécie de delírio, para a medicina. Para mim, era apenas uma outra história, como as muitas que ela me contava. E eu a escutava interessada: o que ele fazia, onde deitava, como era. De repente, passou a ser uma ninhada inteira que se acomodava embaixo da cômoda do quarto. Eu perguntava o que minha avó sentia quando os via, se sentia medo ou alegria. Era alegria. Eles a faziam companhia, ela se sentia bem com as visitas, dormia melhor com elas por perto. Então me disse que não gostava de contar isso para ninguém, que achariam que ela estava enlouquecendo, mas me perguntou, como se soubesse que eu a levaria a sério: será que quando você vier, será capaz de vê-los? Será que vão aparecer para você? Eu disse que não sabia, talvez tivesse a mesma sorte de compartilhar essa realidade. De novo, sem condescendência. As nossas conversas eram improváveis, mas honestas.

O último ano foi muito difícil para a nossa família. Um ano de muitas perdas. O mundo produtivista nos cobra algo que nem sempre podemos dar. Temos que nos consertar, como máquinas, e seguir em frente. Mas o que fazer se ainda não me sinto consertada? O que fazer se sinto que preciso de mais tempo do que o mundo pode me dar?

Quando soube da morte dela, viajei imediatamente, embarquei no primeiro voo. Ainda assim, perdi o velório, perdi a chance de abraçá-la pela última vez. Essa falta sempre ficará comigo e passará a me constituir, como todas as experiências importantes nos constituem. Ouço muitas vezes o último áudio que ela me mandou no WhatsApp (felizmente, tenho muitos), mais uma vez tão amoroso, cheio de vitalidade, mas, ouvindo assim em retrospecto, tem um ar de despedida. Chegando na casa dela, mesmo sem um corpo para abraçar, quis dormir na cama dela, no travesseiro dela, com os lençóis dela. Quis tomar banho no chuveiro dela, usando o sabonete dela, o sabonete recém-aberto, mas que deve ter tocado o corpo da minha avó ao menos uma única vez. Quis me olhar no espelho que ela se olhava todos os dias, e tirei uma foto da minha imagem refletida nele, imaginando quantas vezes a imagem dela também foi refletida ali. Pensei que era o que me restava, a minha forma de me despedir. Quantas células dela ainda deviam vagar por ali.

Minha avó foi uma mulher brilhante, forte, vigorosa, linda e difícil. Se hoje escrevo, sou devedora de um caminho que ela apenas pode começar, porque precisou, com muito pesar, interromper os estudos aos doze anos. Fico imaginando o que ela teria feito com mais recursos, como ela mesma sempre imaginou. Eu disse a ela muitas vezes, em vida, que tinha orgulho de ser sua neta, e agora quero dizer uma vez mais. Aqui, nessa coluna assinada, por escrito, para que fique registrado para a posteridade. Minha avó me abasteceu de amor e de fé em mim mesma — lia e guardava muitos dos meus textos. Encontrei um conto que escrevi aos oito anos em uma de suas caixas, enquanto desmontávamos a última casa em que ela viveu.

Ela não está mais aqui, fisicamente, e eu sinto falta da sua voz, do seu abraço, das nossas conversas, do seu temperamento. Mas sei que posso recorrer a esse vasto depósito de afeto que ela me deixou como herança quantas vezes precisar, enquanto eu durar.

Fabiane Secches

É psicanalista, crítica literária e doutoranda em Teoria Literária e Literatura Comparada na Universidade de São Paulo. Autora de Elena Ferrante, uma longa experiência de ausência (2020).

Rascunho