Dois palitos

Uma história de amor com a língua portuguesa, que sempre vai ficando mais inventiva e elástica do que parece ser
Ilustração: Sumaya Fagury
01/12/2024

Há cerca de um ano e meio, estou morando na Alemanha. Quem vive entre dois mundos sabe bem que a gente nunca finca o pé em lugar nenhum. Apesar das alegrias e da curiosidade que essa experiência me permite, de tudo o que sinto falta, não imaginei que uma das maiores seria a da língua portuguesa. Não apenas a de falar e ouvir um idioma que compreendo — arranho um alemão com dificuldade, mas me viro bem em inglês —, e sim de falar e ouvir conversas banais, anedotas, músicas, filmes em português.

É verdade que algumas dessas coisas posso fazer à distância, mas poucas vezes tenho oportunidade de escutar um causo em língua portuguesa, com toda riqueza que a acompanha. Não apenas a da língua rígida dos manuais de gramática e das obras literárias cultas, que têm seu valor justamente reconhecido, mas a da língua molinha, a língua viva e sujeita a inflexões do dia a dia.

Talvez por isso, nesse meio tempo, eu tenha buscado diversas entrevistas em português, bem como rever episódios brilhantes de Hermes & Renato (que tanto brincam com a linguagem) e a assistir à nova novela de João Emanuel Carneiro, Mania de você, com seus vilões irresistíveis. E talvez, por isso, eu tenha escrito tanto em língua portuguesa: resenhas, artigos, ensaios, colunas, um romance inteiro, que me convocou à intimidade que, acredito eu, só conseguimos ter com a nossa língua materna, por mais fluentes que sejamos em outros idiomas.

Tenho prestado bastante atenção nas particularidades do nosso português, e para quem quer pensar junto comigo, convido a acompanhar Priscila Catão, tradutora literária do inglês e do francês, em seu perfil no Instagram (@priscila.catao). Ela aponta anglicismos, o que há de mais comum em termos de adulteração, que muitas vezes cometemos sem sequer nos darmos conta, mistura um pouco inevitável num mundo cada vez mais interconectado, mas também uma ameaça a um idioma de certo modo marginalizado, como é o nosso. Algo que se deve proteger como uma ave preciosa que sofre risco de extinção.

Por exemplo “tal coisa explodiu minha cabeça”, que vem do inglês, “it blows my mind”, o que ela sugere trocar pela expressão mais simpática “tal coisa me deixa de queixo caído”, ou, penso eu, “isso me deixou maravilhado”, “isso me deixou desnorteado”, ou, ainda, “isso me deixou admirado”. Podemos concordar que toda tradução é sempre uma perda, e costuma se dizer que é um trabalho impossível, mas há caminhos e caminhos. Gosto sobretudo da ideia de trocar uma expressão idiomática por outra. Então, ainda acho mais charmoso o “de queixo caído”.

Também adoro acompanhar memes que igualmente criticam o excesso de anglicismos, quando temos soluções bem mais divertidas em nosso próprio idioma. Por exemplo, os do Greengo Dictionary (@greengodictionary), desde o clássico substituir “bowl” por “cumbuca”, aos demais: substituir “coffee break” por “comes e bebes”, “asap” (sigla para “as soon as possible”)” por “dois palitos”, “budget” por “orçamento”, ou, melhor ainda, “quanto vai ficar essa brincadeira aí” e o “stop making stupid people famous”, que eu mesma já compartilhei, pelos ótimos “não bata tambor pra maluco” ou “não dê palco pra maluco”.

Ainda nessa pegada, tem a curadoria que o perfil @sebastiao.salgados faz no Instagram de diversos autores, sempre identificados, que oferecem maneiras criativas e irreverentes, como a da expressão “não sou muito fã não”, que diria, sutilmente, que ou não se gosta de alguma coisa ou que se está levemente inclinado a não gostar, o que seria “a primazia da incrível língua portuguesa brasileira”. Outro comentário espirituoso diz que adora a expressão “até onde eu sei”, porque poderia mostrar a humildade de quem não sabe nada, mas também deixa em aberto o quanto se sabe, o que poderia ser de muito a quase nada. Ainda, um outro autor diz: “Gosto muito da expressão ‘deus me perdoe…’, porque depois sempre vem algo que deus abominaria que eu dissesse”.

Se a gente mergulhar no nosso idioma e se esbaldar na riqueza do português brasileiro, ele vai ficando ainda mais inventivo e elástico do que parece ser.

Fabiane Secches

É psicanalista, crítica literária e doutoranda em Teoria Literária e Literatura Comparada na Universidade de São Paulo. Autora de Elena Ferrante, uma longa experiência de ausência (2020).

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