Desgraça

Duas décadas antes do caso Weinstein e do movimento #MeToo, "Desonra", de J. M. Coetzee, já sondava a desgraça de homens como David Lurie, personagem do romance
J. M. Coetzee, autor de “Desonra”
02/01/2021

Quando lemos obras clássicas, estamos diante de livros que foram expostos a gerações de críticos e leitores, chegando aos nossos dias numa posição consolidada, que chamamos de cânone. Já com a literatura contemporânea, não existem garantias: um livro muito valorizado por uma geração talvez seja esquecido pela próxima. É difícil antever o que pode perdurar.

Difícil, mas não impossível. Desonra (Disgrace, 1999), romance escrito por J. M. Coetzee, é um caso raro em que podemos apostar, uma obra que tem tudo para sobreviver ao seu tempo, enquanto também é muito perspicaz em representá-lo. Saber que o livro recebeu a premiação mais importante de língua inglesa, o Booker Prize, e que o autor foi laureado com o Prêmio Nobel de Literatura em 2003, são indícios importantes, que apenas se fortalecem com a experiência de leitura.

Desonra conta a história de David Lurie, um professor de literatura na África do Sul, como o próprio Coetzee foi um dia. Ele tem pouco mais de 50 anos, mas lida mal com o processo de envelhecimento. Fala de si mesmo como se estivesse no final da vida. É verdade que já foi mais popular com as mulheres: “Um belo dia, tudo isso acabou. Sem aviso prévio, ele perdeu os poderes. Olhares que um dia correspondiam ao seu deslizavam como se passassem através dele. Da noite para o dia, virou um fantasma”. O narrador onisciente, em terceira pessoa, está sempre colado à perspectiva do protagonista.

Se como homem as coisas já estiveram melhores, Lurie também foi escanteado como professor. Quando o Departamento de Línguas Clássicas e Modernas foi fechado, a universidade o convocou para dar aulas de comunicação. “Como não tem respeito pela matéria que ensina, não causa nenhuma impressão nos alunos. Não o olham quando ele fala, esquecem seu nome. Essa indiferença lhe dói mais do que ele admite.” Apenas uma vez ao ano, pode propor um curso diferente. Autor de três livros medianos e obscuros, escolhe uma disciplina sobre poetas românticos.

Na abertura do livro, o narrador diz: “Para um homem de sua idade, cinquenta e dois anos, divorciado, ele tinha, em sua opinião, resolvido muito bem o problema do sexo”. O problema do sexo. Logo na primeira linha, Coetzee antecipa boa parte do que virá a seguir. A solução que encontrou foi um arranjo quase burocrático. Uma vez por semana, David Lurie encontra Soraya, prostituta com quem tem uma relação de “luxe et volupté” (luxo e volúpia), numa das muitas expressões estrangeiras que permeiam o texto (em francês, em italiano, em latim). O pedantismo deve ir para a conta do protagonista e não do narrador, menos ainda do autor. O discurso indireto livre, que Coetzee maneja com habilidade, é um recurso que vai ficando cada vez mais demarcado.

Quando a relação com Soraya naufraga, Lurie fica com o “problema do sexo” novamente nas mãos. E o que faz para resolvê-lo? Passa a flertar com uma aluna jovem, que corresponde de forma vacilante, ecoando as discussões contemporâneas sobre consentimento e responsabilidade. E o professor não apenas percebe a hesitação, como também sabe que o avanço pressupõe o cruzamento de barreiras éticas. Ainda assim, vai adiante, como se guiado pelo imperativo do desejo ou, quem sabe, da autodestruição. Lurie é um homem velho muito mais na mentalidade do que na idade. Ele se interessa por um outro tempo e parece descolado do seu próprio. Gosta apenas dos poetas mortos, de ópera clássica, um exemplar perfeito de uma mentalidade humanista europeia num ambiente africano pós-colonial, em que essa visão de mundo já não pode bastar.

Mas, em vez de acompanhar o movimento de um mundo em transformação, ele finca o pé: “Seu temperamento não vai mudar, está velho demais para isso. Está fixo, estabelecido. O crânio, depois o temperamento: as duas partes mais duras do corpo”. É nisso que ele acredita e, como acredita, torna verdade.

As consequências do envolvimento com a aluna são desastrosas. Depois de ser submetido a uma comissão interina, formada para avaliar o caso, ele decide visitar a filha, Lucy, que vive sozinha numa região rural no interior do país. Ao contrário dos pais, urbanos e intelectuais, ela escolheu um estilo de vida diferente, que ele tem dificuldade de compreender e aceitar, ainda que, em alguns momentos, também pareça admirar.

“Ele não tem filhos homens. Passou a infância em uma família de mulheres. À medida que mãe, tias, irmãs se foram, ele as foi substituindo por amantes, esposas, uma filha. A companhia de mulheres fez dele um apreciador de mulheres e, até certo ponto, um mulherengo.” Mas se David Lurie passou a vida cercado de mulheres, permanece refratário a qualquer experiência de alteridade. Muito ensimesmado, é misógino, egoísta e arrogante. Mulherengo, sem dúvida. Já “apreciador de mulheres”, o que significa isso? A expressão é perfeita em sua ambiguidade.

Lucy o questiona mais de uma vez e as conversas entre pai e filha ocupam algumas das páginas mais interessantes de um livro que é todo densidade, nos temas difíceis que conjuga e no plano do enredo, repleto de acontecimentos e reviravoltas. E Coetzee constrói seu protagonista de maneira tão verossímil que impressiona. Quantos Davids Luries conhecemos por aí? Quantos não estão ocupando os noticiários atuais? Há 20 anos, duas décadas antes do caso Weinstein e do movimento #MeToo, Desonra já sondava a desgraça que espera por homens como ele, e também as desgraças que os produzem.

Desgraça é uma palavra forte, mas não tenho dúvidas de que esse seja um livro que pode sustentá-la. Embora a tradução brasileira, feita por José Rubens Siqueira, seja uma boa tradução, há uma perda importante na versão do título. Desgraça seria a opção mais próxima do original e também do conjunto de tragédias, misérias e sofrimentos que a obra trata. A perda da honra, ou de uma situação favorável, é apenas um dos muitos aspectos que são abarcados e conjugados no livro, sem esquematismos.

Aqui, estou deixando de lado muitos elementos importantes, como a especificidade do contexto histórico da África do Sul, que merecia um texto à parte. Mas, de todas as diversas formas de desamparo e violência que o livro trata, sempre intrinsecamente ligadas, David Lurie personifica muitas delas. É um homem branco de classe média, entusiasta da cultura ocidental, num país profundamente cindido, em que os colonizados acabam de derrubar um sistema de segregação baseado em raça e etnia. Ele é o colonizador, quase uma antítese de Nelson Mandela, principal líder da África Negra, eleito presidente em 1994.

Mas Lurie acaba sendo confrontado com sintomas brutais da ferida aberta em seu país. Quando sua filha é vítima de uma violência quase inominável, é colocado numa posição ainda mais dolorosa do que o pai de sua aluna. Então, tem breves lampejos de sensibilidade, uma pequena abertura para se conectar a outros seres e a outras experiências — como as das pessoas negras, das mulheres, dos animais. Infelizmente, porém, são apenas fagulhas. Iluminações que não quer, não consegue reter. Parafraseando Kafka: há esperança, mas não para ele.

É simbólico, embora também seja concreto. Para que um mundo novo possa surgir, é preciso que o velho seja destituído de seu estado de graça. David Lurie é como um anjo caído, que precisa aprender a se tornar ou a se reconhecer como um igual. A outra opção seria se debater pela desgraça, afundando em ressentimento e cinismo. Quando Lurie cita Lúcifer, numa de suas aulas sobre Lord Byron, diz: “Bem ou mal, ele faz. Não age por princípio, mas por impulso, e a fonte de seus impulsos é obscura para ele”. E, depois: “Ele é exatamente o que disse ser: uma coisa, isto é, um monstro. Enfim, Byron irá sugerir que não é possível amá-lo, não no sentido mais humano, mais profundo dessa palavra. Ele será condenado à solidão”.

A pena é que a maior parte acabe preferindo mesmo reinar nas sombras do que se resignar a ser humano. Não mais um anjo de luz, nem um príncipe das trevas, mas, enfim, um de nós.

Fabiane Secches

É psicanalista, crítica literária e doutoranda em Teoria Literária e Literatura Comparada na Universidade de São Paulo. Autora de Elena Ferrante, uma longa experiência de ausência (2020).

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