Caderno de notas (8)

A entrega de Lya Luft, as dificuldades nas ruas e a vida de João Cabral
João Cabral de Melo Neto, autor de “Morte e vida Severina”
01/05/2003

Recebo as provas de Perdas & ganhos, o novo livro de Lya Luft, que está saindo pela Record. Não é um romance, não é um livro de contos, não são poemas. É um livro híbrido, despreocupado com as formas literárias, na mesma linha de seu O rio do meio: um relato sem gênero, que vacila entre o confessional, o reflexivo e o educativo, entre a experiência pessoal e o que somos capazes de dela tirar. É, sobretudo, um livro extremamente generoso. Poderá não ganhar prêmios, nem receber críticas entusiasmadas, ou mesmo ocupar posição de destaque na vigorosa obra de Lya. Mas não é com isso que a escritora parece preocupada: com o sucesso, a consagração, a defesa de sua assinatura. É muito comovente ver Lya Luft, em plena maturidade criativa, abrir de certo modo mão da obra para, ainda no interior da obra (e onde mais?), ceder espaço para o diálogo e a entrega.

Perdas & ganhos haverá de interessar a pais de família, a professores, a psicanalistas, a educadores, a adolescentes. E interessará muito. Mas não é nessa perspectiva que ele me interessa. O que me espanta é a coragem de Lya, seu desapego à imagem literária, seu coração aberto, de doação e busca do outro. Contra todos os cânones estéticos e valores em vigor, ela se volta para a confissão pura, a reflexão compartilhada, o ato simples, mas essencial, de dividir a experiência, como quem, serenamente, oferece um agasalho, ou um pedaço de pão. Algo pequeno, muito pequeno, que críticos esnobes, provavelmente, tomarão por simplório. Que eles gozem com suas próprias avaliações, Lya Luft não parece preocupada com isso. Sua questão é outra, e é muito difícil: o que ela, uma escritora de prestígio, pode fazer com seu nome de escritora? Como usá-lo? Como tirar partido dessa assinatura tão duramente conquistada? O que fazer com isso — ser um escritor?

É uma questão que ultrapassa a literatura e, por isso mesmo, enriquece a literatura. Lya sabe que um escritor nada mais é que um sujeito como qualquer outro, que se dedica a seu ofício e nele se encontra. No entanto, em nossa sociedade de griffes, rótulos e assinaturas, ao nome do escritor é conferido um valor suplementar, um “a mais”. É com este valor suplementar, e na verdade supérfluo, que ela vem trabalhar. Não para dele tirar vantagens pessoais, ou com ele buscar algo como a glória, mas sim para revirá-lo, aproveitando-se não em benefício próprio, mas em busca de seu leitor. Se alguém “sem assinatura” se confessa, parecerá desabafo, catarse pessoal, quando não chateação e até falta de certo pudor. Mas Lya Luft tem uma griffe, que está em seu próprio nome, Lya Luft, que se reduz, aliás, a ele. Todo escritor, todo artista é, no fim das contas, isso: uma assinatura. Marcel Duchamp, como ninguém, denunciou esse mecanismo. Então, Lya se aproveita dele para dizer coisas simples e, em vez de ser tomada como inconveniente, ou intrometida, ter a chance, tão simples, mas difícil, de dizer e ser ouvida. Ser lida. A assinatura é um veículo, um instrumento da mulher Lya para chegar ao que ela, de fato, busca: a entrega, a doação de uma parte de sua vida a quem puder, e tiver a coragem de se interessar. E aceitar.

Se ela acerta, se erra, se idealiza, se exagera, se menospreza, se está se repetindo ou se negando — isso é um outro problema, absolutamente sem significado em contraste com a coragem do ato. Lya escreve sem se preocupar com os riscos que corre. Arrisca-se à primeira pessoa, risco extremo para quem o Eu é o único valor a ser oferecido (o que é um Van Gogh? o que é um Joyce? o que é um Glass? — senão garantias oferecidas ao mercado?). E dele faz um uso que ultrapassa sua pessoa e sua vaidade, faz desse nome uma doação. Tal generosidade é muito rara. Muitos a tomarão como desistência, ou como facilidade, ou como desleixo, ou até como oportunismo. Estarão completamente enganados: não sabem a coragem que ela exige. O mundo sente muita falta disso. Ao ler Perdas & ganhos, não importa saber se estamos lendo um livro bom ou mediano, se um ensaio ou uma confissão, se estamos gostando ou não. Estes são valores que não lhe dizem respeito. Importa, apenas, que nos sentimos acompanhados.  E isso é tão raro e guarda tanto valor.

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O documentário À margem da imagem, de Evaldo Mocarzel, cuja versão compacta em quinze minutos, quatro vezes menor que a original, já recebeu uma larga coleção de prêmios, não é um filme para espectadores mornos. Sua estrutura é simples: com paciência e, sobretudo, com delicadeza, Evaldo entrevista moradores de rua de São Paulo, interessado em descobrir os motivos que os levaram a viver nas ruas, o modo como sobrevivem e as explicações que conseguem se dar a respeito de suas vidas.

Não há pieguismo, nem piedade fácil: Evaldo não mede as palavras, nem se distancia de seus entrevistados. Não há sentimentalismo: eles não são apresentados como vítimas, ou seres de quem devamos sentir pena. Ao contrário, e aqui começa a grandeza do filme, as entrevistas são realizadas num clima de intimidade e de franqueza, de igual para igual. São entrevistas feitas com ternura, mas também com firmeza; os moradores de rua são levados a falar, francamente, de seu cotidiano, a descrever os trajetos existenciais que os jogaram fora de casa, a relatar as vantagens e até os prazeres possíveis na experiência de uma vida sem teto.

Evaldo não fez seu documentário com o espírito de denúncia. Em vez de investir contra a sociedade que produziu tais sujeitos, ele acaba por mostrar que, se foram jogados na rua pelo desemprego, pelos dramas pessoais e pela sorte, esse cair na rua foi, também, de alguma maneira, uma opção — que alguns vêem como transitória, outros como definitiva. Quer dizer: mesmo na rua, eles continuam a ser sujeitos de suas vidas. Não há ilusões a respeito de uma sociedade bondosa que pudesse vir a salvá-los, e os entrevistados dela também  não compartilham. São pessoas dignas, agarradas a suas diferenças, a seu tônus individual, e até decididos a preservá-los a qualquer custo. Um vive de bicos, outro adota a posição de guru, outra se prostitui e, soropositivo, aguarda o pior; mas, tratados não como vítimas e sim como agentes do próprio destino, Evaldo não só lhes devolve a dignidade, como neles desvela uma força insuspeita, ao menos para nós que, aboletados em nossos automóveis, vemos aquelas sombras que cruzam o asfalto como se fossem ninguém.

Não são pobrezinhos, mas pessoas em trânsito e em estado de luta contra um mundo adverso. Em combate, mas orgulhosas de sua capacidade de resistir e de sobreviver. Desse modo, o documentarista, ele também, se põe a lutar contra seus próprios preconceitos e ideais. Evaldo estabelece diálogos, provoca, acolhe, mas também questiona e desafia. O resultado é que as entrevistas lhe devolvem um mundo, ele também, “cheio de si”, com seus enquadramentos, suas edições, suas escolhas. Ninguém ali é vítima: nem o documentarista, apesar de enfrentar um real que não consegue domar, nem os entrevistados, apesar da situação miserável que lhes cabe viver. Nada daquilo é estranho, ou mesmo exótico: trata-se do mundo em que vivemos, ainda que da borda desse mundo; trata-se, como diria Nelson Rodrigues, da vida tal qual ela é.

O título do filme, À margem da imagem, nos faz pensar também numa opção não só estética, mas ética. No lugar de imagens acabadas, de personagens fechados, da busca ansiosa de significados, Evaldo fez um filme em que o cinema, em vez de captar, vem dialogar; em vez de editar, vem dispersar e liberar. As imagens fechadas e bem pensantes não interessam ao diretor. Não há um tema, uma visão, uma perspectiva, uma tese a ser provada. Nada. Evaldo não está nem a favor, nem contra os entrevistados — está com eles. E é nesse com que reside, provavelmente, a força do filme, princípio que se espalha por sua qualidade estética, dura mas serena, e pelas cenas difusas de uma São Paulo que estamos acostumados a ver sem ver. E, sobretudo, que espanta aqueles sentimentos, um tanto mecânicos, que todos cultivamos, aqueles tiques nervosos que tomam conta de nós quando, na rua, uma figura miserável se aproxima, vem pedir alguma coisa, vender alguma coisa, dizer alguma coisa, mas nós, tensos e cheios de suspeitas, logo pensamos no pior.

Evaldo vem desmascarar, com seu filme, essa nossa miséria. Também nós, que temos casa e freqüentamos a rua, e que eventualmente até somos vítimas de moradores de rua, apesar disso guardamos uma imagem fixa e encarcerada daqueles que vivem à margem não só da imagem, mas da própria vida. Com seu documentário, Evaldo Mocarzel vem estilhaçá-la e, por isso, ao fim da sessão, sentimos uma certa fraqueza. Parte de nossa segurança, de nossas certezas e até de nossa sinceridade e possível altruísmo ali, naquela hora de projeção enfurecida, se esvai.

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Um outro documentário, Recife/Sevilha, de Bebeto Abranches, a respeito de João Cabral de Melo Neto, vem, por caminhos diversos, aproximar-se do mesmo projeto. Bebeto não esconde sua admiração por Cabral, nem teria motivo para fazê-lo. Mas esse sentimento não exclui, ao contrário, abre caminho para a visão de um Cabral cheio de paradoxos, dividido entre o Recife de nascimento e a Sevilha de adoção, e que por isso nunca se sente inteiramente feliz onde está.

A poesia de Cabral, Bebeto nos deixa ver, apesar de construída sobre um ideário límpido e que Cabral defende com grande força intelectual, surge de um conjunto de valores em conflito, que vão da timidez do poeta, a sua curiosidade e seu intelectualismo. O poeta sabe o que quer, mas o mundo lhe puxa o tapete sob os pés. Caminha pelo Recife, caminha por Sevilha, sempre em busca da confirmação que não encontra. “Desembeleza” as coisas, “despoetiza” o mundo, na esperança de despi-lo de mentiras e máscaras para encontrar as coisas tal qual são. Mas o que lhe resta, desse esforço, é a linguagem, a beleza dos poemas que foi capaz de escrever — ainda, e sempre, o artificial.

Os documentários de Evaldo e de Bebeto nos fazem pensar na complexa relação que temos com a realidade. Até porque, seria melhor dizer realidades, de tal modo as coisas nela se chocam, se desmentem, se anulam e lutam entre si. Se a vida é movimento, é também instabilidade, sentimentos opostos, visões e fatos discrepantes. O velho realismo sempre desejou fechar a experiência humana em imagens límpidas, rigorosas e explicáveis. Sem compartilhar dessa ilusão, Evaldo e Bebeto saltam para fora da imagem e, ao ocupar as bordas, instalando-se na margem mais extrema, nos oferecem uma visão bem mais embaçada, mas também bem mais rica das coisas.

Tanto que eles não se esforçam para encontrar soluções, ou formular doutrinas; ao contrário, querem distância delas. Evaldo é seco, metódico — é cabralino e, agindo assim, não asfixia seus entrevistados com a sua fala de diretor de cena. Bebeto é tortuoso, sensual, anticabralino diante do próprio Cabral, e com isso desvela a agitação que o move. Evaldo aparece em seu filme, aqui e ali, filmando e sendo filmado, a câmera o colocando como parte direta (e real, tal qual é) do mundo que se vê. Nós o vemos a se infiltrar na rua, a nela reivindicar seu lugar de cineasta (um lugar, é claro, diferente daquele ocupado pelos moradores, mas não menos problemático). Bebeto, ao contrário, se esconde — e mesmo quando poemas de Cabral são ditos, a voz não é sua. Esmaece sua própria imagem, salta para a margem da margem. Com grande habilidade, sem que percebamos, ele nos prende. Levanta saias e mais saias, como as dançarinas sevilhanas, sem nunca delas escapar. Sedução que se materializa, por exemplo, na magnífica seqüência que vem ilustrar o interesse de Cabral pelas aspirinas, filmada em plena fábrica da Bayer, as aspirinas a deslizar, ritmadas e em série, compondo seu próprio (e improvável) espaço poético.

Poética dura, talvez, não para amansar a realidade ou para sentimentalizá-la, não para exaltar o poeta ou, o que seria ainda pior, cabralizar Cabral. Mas para, como dizia o próprio João Cabral, “dar a ver”. E aí que o espectador suporte as conseqüências, que seja capaz de sustentar seu lugar de receptor. Quero dizer, que não adoce, ou explique facilmente, a falta de apoio, de certezas, os paradoxos e as instabilidades em que se movimentam os moradores de rua. A inconstância, a sisudez, o mau-humor de João Cabral são mais um elemento nesse jogo. Há uma fita gravada, que Bebeto resgatou, que diz tudo. Numa festa entre amigos, Vinicius toca suas músicas. Cabral o provoca, ironizando seu famoso sentimentalismo. Vinicius responde: diz que um dia ainda vai musicar os poemas de pedra de Cabral. Face e avesso de cada um, Vinicius também foi cabralino, e Cabral sentimental. Só que cada um deles escolheu um lado diferente do campo para jogar, o que não exclui intromissões no lado oposto, ou a cegueira do todo.

A realidade é móvel e o realismo só pode funcionar quando conserva uma sincronia tensa com esses movimentos. Quando suporta a ignorância e a contradição, sem se entregar ao desejo consolador de ordem.  Quando, enfim, não se ilude a respeito da realidade, nem de seu poder para petrificá-la.

José Castello

É escritor e jornalista. Autor do romance Ribamar, entre outros livros.

Rascunho