As muitas formas de ler Elena Ferrante

Todos os romances da italiana inspiraram adaptações, e essas versões devem ser apreciadas como autônomas, mas também podem agregar valor a futuras leituras
Cena da série A amiga genial, cuja terceira temporada estreou na HBO
01/04/2022

Há momentos da nossa vida que funcionam como divisores de água. São raros, mas existem. Um desses episódios de ruptura e transformação aconteceu, para mim, em 2015, há cerca de sete anos, quando, ao acaso, cheguei ao romance A amiga genial, o primeiro de quatro volumes que, em conjunto, compunham uma única obra chamada de “tetralogia napolitana”. Estava numa livraria transitando pelas prateleiras, acompanhando os lançamentos, reedições, novas traduções de clássicos, ou seja, de olho na literatura viva, que está em diálogo com o nosso tempo. Foi quando encontrei Elena Ferrante pela primeira vez.

A amiga genial (publicada pela Biblioteca Azul, com excelente tradução de Maurício Santana Dias) é uma obra absolutamente contemporânea. Na Itália, chegou às livrarias em 2011 — e os outros volumes, nos anos consecutivos: de 2012 a 2014. Ainda que acompanhemos a jornada das protagonistas desde a infância, vivida no pós Segunda Guerra Mundial, o enredo vai caminhando até chegar aos dias atuais. É a partir desse presente que a obra é narrada, criando uma dissociação entre tempo da narrativa e tempo da narração. Somente no prólogo e no epílogo essas temporalidades se encontram.

O passado entra pelas frestas através de um processo intenso de rememoração, tentativa de compreensão, expiação e ressignificação. Coisas que estavam recalcadas retornam e, com elas, um mal-estar. A narradora, Elena Greco, tem entre 60 e 70 anos quando começa a escrever a história. O que motivou a escrita desse romance, dentro de seu universo ficcional, foi o desaparecimento de sua amiga de infância Rafaella Cerullo, ou Lila, como a chamava desde menina. A partir dessa ausência, a narradora busca um efeito de presença, examinando, nas lembranças, a ambivalência dessa relação tão longa e complexa.

No ano da minha primeira leitura, Ferrante ainda era relativamente desconhecida no Brasil. Pouco a pouco, no entanto, passou a causar furor pela sua qualidade literária e pelo espírito do tempo — o tal zeitgeist —, já que as pessoas estão interessadas em ler histórias como essas, que têm um olhar crítico e reflexivo sobre temas importantíssimos. Também há um fato que despertou a curiosidade geral: há três décadas, Elena Ferrante é um pseudônimo, e seus leitores não conhecem o verdadeiro nome de quem o assina.

Muitas especulações e investigações depois, a única convicção que temos é de que seu texto continua reverberando mundo afora. Como vimos na coluna passada em que escrevi sobre A filha perdida, romance de Ferrante adaptado para o cinema por Maggie Gyllenhaal, que tem feito um percurso admirável: está recebendo reconhecimento da crítica e também de premiações importantes. Já o último livro de Ferrante, A vida mentirosa dos adultos, publicado na Itália em 2019 e no Brasil no ano seguinte, vai inspirar uma minissérie da Netflix. O elenco principal foi confirmado recentemente e é provável que logo esteja disponível na plataforma.

Na verdade, todos os romances de Ferrante — desde Um amor incômodo, publicado na Itália há 30 anos, em 1992, até A vida mentirosa dos adultos, o mais recente —, inspiraram filmes e séries. Todos foram adaptados.

Tenho pensando nessas versões, que nos apresentam uma transposição da linguagem literária para a linguagem visual, que pressupõe interpretação e recriação. É uma tradução que transita entre dois formatos diferentes, o livro e a tela, que se comunicam bem, mas têm especificidades particulares que precisam ser respeitadas. Então, cheguei a um caminho que tem me interessado muito: a ideia de que essas obras devem ser apreciadas como autônomas, mas também podem dizer muito sobre leituras possíveis dos romances que as inspiraram.

Sabemos que a fidelidade ao material original nem sempre é um bom critério de aferição da qualidade ao analisar uma obra adaptada. Ao contrário, como diz a própria Ferrante, às vezes é preciso trair algo desse material para que se torne possível fazer uma aproximação daquilo que é tomado como o coração da obra.

Tratar esses filmes, séries e minisséries como releituras diferentes da obra da Ferrante me fez perceber que desde 2015 — depois de escrever alguns trabalhos de psicanálise e um projeto de pesquisa para o mestrado, que, por sua vez, deu origem à escrita do meu livro, Elena Ferrante, uma longa experiência de ausência (Claraboia, 2020) —, há quase sete anos, estou lendo e relendo a mesma obra, com propósitos diferentes: para dar uma aula, para escrever um artigo, para cotejar com a série etc.

Construí com o texto de Ferrante, sobretudo com a tetralogia napolitana, uma relação de intimidade profunda. São mil e setecentas páginas e consigo citar alguns trechos praticamente de cor. Agora, com o lançamento da terceira temporada da série (HBO + Rai), o romance também retorna, e eu posso notar detalhes e nuances que passaram por mim com certa desatenção, em outros momentos da leitura.

Elena e Lila, cada qual à sua maneira e dentro de suas possibilidades, vivem questionando o status quo, e a abordagem desse embate com o mundo patriarcal é tão verossímil que chega a ser inquietante. Tivemos a impressão de que fizemos conquistas importantes, que já estávamos caminhando para um novo momento, e aí um presidente como Bolsonaro é eleito e tudo vira de pernas para o ar. Como é possível que um homem tão violento, especialmente com as mulheres, seja capaz de angariar votos o bastante para se tornar o presidente do nosso país?

Há uma onda conservadora que tenta nos jogar de volta para o lugar do qual Elena e Lila também lutaram tanto para escapar. Como escreve Simone de Beauvoir: “Nunca se esqueça que basta uma crise política, econômica ou religiosa para que os direitos das mulheres sejam questionados. Esses direitos não são permanentes. Você terá que manter-se vigilante durante toda a sua vida”.

Fiquei pensando nas muitas maneiras de reler uma obra. A mais intuitiva é a mais óbvia: abro um livro aos 20 anos e penso sobre ele; reabro aos 40 anos e posso pensar coisas novas, diferentes. O que dirá aos 60 ou aos 80. Uma outra maneira de reler uma obra é cotejá-la com as suas traduções. No caso da tetralogia napolitana, há diversas versões: peças de teatro, ilustrações, pinturas, audiolivros e mais.

Ao assistir à terceira temporada da série exibida pela HBO, que acaba de estrear e, portanto, é a mais distante da minha primeira leitura, pude repensar algumas interpretações e impressões. E pude confirmar a impressão de que uma mesma obra, em momentos diferentes da vida, nos mobiliza, agrada ou desagrada de formas distintas — provoca ou acolhe, instiga ou não.

No caso da tetralogia, passei a gostar ainda mais do terceiro volume depois de assistir à série. O enredo de Ferrante consegue nos acompanhar em diversas fases da vida, crescendo na releitura. Segue sendo muito relevante para o nosso tempo. Ainda que boa parte da ação se desenrole no passado (século 20), é possível que nos identifiquemos com os sentimentos e pensamentos das personagens, com seus temores e com suas raivas, não importa que idade Elena e Lila tenham na narrativa.

Hoje entendi que estou relendo a tetralogia há anos e anos, que, mais, nunca parei de lê-la. E provavelmente vou continuar fazendo isso por muito tempo. Toda relação com um livro, se não se encerra quando viramos a última página, pode ser uma forma de dizer que estamos vivos, que essa obra continua nos acompanhando, e que, em sua opacidade, Ferrante também traz uma luz tão intensa que, para alguns, mais pode cegar do que iluminar — como é o caso do farol que invade o apartamento escuro de Leda, de tempos em tempos, em A filha perdida.

Gostaria de terminar esse texto com um trecho de Heráclito: “Ninguém se banha duas vezes no mesmo rio”. Assim como o rio segue o seu curso, nós seguimos o nosso.

Essa é a beleza de estarmos aqui, vivos, abertos e em transformação. Não importa que idade tenhamos: nunca é cedo ou tarde para acompanhar o nosso tempo, nem para revisitar obras queridas sob novos ângulos.

Fabiane Secches

É psicanalista, crítica literária e doutoranda em Teoria Literária e Literatura Comparada na Universidade de São Paulo. Autora de Elena Ferrante, uma longa experiência de ausência (2020).

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