No poema Assenza, Attilio Bertolucci escreveu que a ausência é a forma mais aguda de presença. Elena Ferrante, pseudônimo que assina algumas das obras mais comentadas da literatura contemporânea, parece concordar:
Estou presente, tanto nos meus romances como nas respostas às entrevistas. O único espaço onde o leitor deveria procurar e encontrar o autor é o da sua escrita.
A dicotomia presença/ausência adentra seus enredos desde o lançamento de seu primeiro livro, Um amor incômodo (L’amore molesto), publicado no Brasil em 2017 pela Intrínseca com tradução de Marcello Lino.
Narrado em primeira pessoa, o romance tem cerca de 170 páginas. Embora seja breve, é também bastante denso: no centro do enredo, temos uma complicada relação de mãe e filha contada a partir da perspectiva da filha, Delia, uma mulher de 45 anos.
A primeira frase do livro já traz um indício de que não será uma leitura fácil: “Minha mãe se afogou na noite de 23 de maio, dia do meu aniversário”. Ferrante dedica o romance à sua mãe.
A morte da mãe no aniversário da filha soa bastante simbólica e poderia ser interpretada com a ajuda da psicanálise: vida e morte são pares opostos, mas também complementares e, mais, dois campos que se misturam. Como mãe e filha no livro de Ferrante.
O romance narra o período de luto de Delia que, após a notícia, precisa retornar a Nápoles, cidade onde cresceu — cenário que Ferrante retomaria, direta ou indiretamente, em todos os seus livros posteriores.
Ao voltar para o bairro e para a casa onde passou parte importante de sua infância, Delia retorna também para o dialeto napolitano, para o idioma materno.
A protagonista então é tragada por seu passado enquanto tenta descobrir o que aconteceu com a mãe, que morreu em circunstâncias misteriosas. Por isso, Um amor incômodo foi classificado como suspense psicológico.
Podemos dizer que, formalmente, o romance tem uma estrutura narrativa um pouco mais onírica do que os demais livros de Ferrante. A autora retoma os temas centrais desse livro em toda sua obra e parece ter se aprimorado em abordá-los ao longo dos anos.
Em um trecho de Frantumaglia, antologia de entrevistas e outros textos, Ferrante se dedica a pensar na “imagem da mãe” e faz um gancho com a psicanálise. Conta que o primeiro contato que teve com a obra de Freud foi aos 16 anos e que ficou muito impressionada: “eu amo Freud”, afirma. Em sequência, menciona também Melanie Klein, Lacan e Luce Irigaray, pensadora belga cujos trabalhos transitam entre filosofia, linguística e psicanálise.
Ferrante diz que o título original, L’amore molesto, faz referência a um texto de Freud, Sexualidade feminina (1931), mais especificamente à fase que antecede o Édipo das mulheres, quando mãe e filha vivem uma relação intensa, uma espécie de indissociação. Nesse momento, segundo Freud, o pai (ou a figura paterna, quem quer que desempenhe essa função) é para a menina apenas um “rival incômodo”.
Ferrante comenta que, na época do lançamento do livro, a editora italiana chegou a propor algumas sugestões de títulos, quando se lembrou da frase de Freud. Pensou em Rivale molesto (Rival incômodo), mas a importância da figura paterna lhe pareceu equivocada. Então, no que considera uma virada importante, chegou ao título atual. Na tradução brasileira Um amor incômodo, o artigo indefinido um parece fora de lugar. Afinal, Ferrante está nos dizendo que não se trata de um amor incômodo, mas do primeiro amor incômodo, o que pediria o artigo definido, tal qual ocorre no título italiano.
Passamos a vida nos equilibrando entre duas forças contrárias que, no entanto, não se excluem: o desejo e o temor de se misturar ao outro. Enquanto buscamos autonomia e identidade, também somos atraídos pela ideia de retorno a algo que seja anterior ao eu. Essa ambivalência nos constitui e movimenta; haver-se com ela é trabalho de uma vida.
Embora a clareza da escrita de Ferrante nos dê a impressão de que a leitura fluirá sem dificuldades, é com nossas próprias dificuldades internas que vamos nos confrontar. As histórias de Ferrante despertam uma identificação profunda, sobretudo para as mulheres.
Freud dizia que, durante o percurso analítico, estaríamos nos dispondo a acordar os demônios que habitam nosso subsolo, a vivenciar uma jornada sem garantias. Para Kafka, um bom livro é aquele que funciona como um machado capaz de partir os mares gelados dentro de nossa alma. Parecem duas boas imagens para ilustrar a experiência de ler Elena Ferrante.