“É preciso uma vila para criar uma criança.” O provérbio, se não me engano de origem nigeriana, infelizmente não orienta a prática. O que vemos é o contrário disso: a maternidade como experiência solitária e onerosa para boa parte, talvez a maioria das mulheres. Uma jornada permeada de ambivalências, muitas vezes obscura, tensa, misteriosa, riquíssima de questões.
Ainda assim, por muito tempo a literatura parece ter se encantado mais pelos “grandes” temas da humanidade: viagens desbravadoras, guerras aniquiladoras, fundação de cidades e de exércitos, apropriação de riquezas, amores trágicos. O ambiente doméstico, em comparação, era retratado de modo prosaico, olhado de relance, quase sem graça, salvo um ou outro conflito familiar que terminasse em traição, roubo, assassinato.
Aos poucos, a ideia de que o mundo interno de cada pessoa pode ser permeado de mais tempestades e maremotos do que uma travessia transatlântica foi inspirando histórias instigantes, em que o mundo externo poderia até parecer tomado de calmaria enquanto tensões importantes se desenrolavam em silêncio.
Elena Ferrante pode não ter sido a primeira escritora a olhar para a maternidade com a complexidade que o tema merece — como também faz a psicanálise —, mas com certeza foi a que causou mais furor, a que rompeu uma bolha e jogou luz (ou sombra) aos inúmeros afetos que permeiam as relações entre mães e filhas. Desde o seu primeiro romance, Um amor incômodo (1992), temos como eixo central a história mal digerida de Amália e Délia, mãe e filha. O livro começa enunciando a morte da mãe, no dia do aniversário da filha. A vertigem da sobreposição entre morte e vida logo na primeira linha.
Depois, no perturbador Dias de abandono (2002), uma mulher é abandonada pelo marido e fica sozinha com duas crianças pequenas e um cachorro, acabando confinada ao apartamento em que vivem, literalmente incapaz de abrir a porta de casa. Enquanto isso, o filho e o cachorro adoecem, e a filha precisa se confrontar com a experiência de loucura da mãe, funcionando como o eixo que a traz de volta à realidade, a si mesma.
É no ambiente pacífico e acolhedor de uma casa de família que o terror aponta. É a mesma mãe que protege a que machuca, é a mesma filha que quer bem e quer mal. A guerra não é entre gregos e troianos, mas entre pessoas queridas, íntimas, que se gostam profundamente. A guerra é, antes, dentro de cada uma dessas pessoas, na tentativa de abrigar, conciliar, resolver forças opostas tão potentes.
Quando Ferrante publicou A filha perdida (2007), a maternidade se solidificou como um dos temas centrais de sua obra. O tratamento que a autora dedica a essa experiência escapa de qualquer maniqueísmo. Não temos mocinhas e vilãs. Temos mulheres que, digamos assim, não são exemplares no papel social pré-estabelecido, quer seja como filhas, quer seja como mães — no caso desse romance, em ambas as posições. Leda, a protagonista, tem entre 47 e 48 anos quando as filhas, já adultas, saem de casa para morar no Canadá com o pai, de quem é separada. A princípio ela parece apreciar o espaço vazio que a partida das filhas deixa e que pode ser preenchido conforme lhe der na telha. Mas, aos poucos, uma espécie de mal-estar se anuncia, vai escorrendo por entre as brechas, e amarga a sensação de alegria, de dever cumprido e de liberdade.
Quando sai de férias e viaja para uma cidade no litoral do sul da Itália, acaba conhecendo uma família numerosa e barulhenta, napolitana como ela, o que a arrasta de volta para o seu passado, um passado do qual lutou muito para escapar. Memórias de sua mãe se misturam a lembranças de suas filhas, da infância das meninas, enquanto ela se torna obcecada por Nina, uma jovem mãe, e sua filha, Elena, uma criança que tem entre três e quatro anos e anda sempre acompanhada de uma boneca. As três — Nina, Elena e a boneca — formam uma espécie de miragem, em que uma parece a miniatura da outra, como quando abrimos uma boneca russa e ela se transforma em outras. A relação de Nina e Elena, à primeira vista, parece tão harmoniosa e completa para Leda, tão autossuficiente, que admira e inveja. Ela jamais conhecera com sua mãe, nem com suas filhas, nada parecido com esse idílio. Olhando mais de perto, porém, descobre que as coisas não são bem assim como imaginava. Elas nunca são bem assim se encaradas com honestidade.
A boneca é um elemento muito importante para o romance e aparece também em outras obras da autora, como no livro infantil Uma noite na praia (2006) e mais tarde em A amiga genial (2012-2014), o conjunto de romances chamado de tetralogia napolitana, considerada a obra-prima de Ferrante. É curioso como ela subverte esse elemento pueril e o leva ao estatuto assustador que as bonecas assumem em filmes de terror e fotos antigas, como se fossem seres vivos ou duplos das personagens, na qual projetam seus temores, carências e anseios.
Pois em certo momento da história, Leda rouba a boneca de Elena na praia. Um gesto que ela mesma não consegue compreender, não consegue atribuir um sentido. E passa a cuidar dela, limpá-la, embalá-la, vesti-la com novas roupas. É uma imagem de fragilidade que enternece, ao mesmo tempo que é uma imagem inquietante que assombra. No romance, Leda diz que uma mãe nada mais é do que uma filha que brinca, e acho que essa é a minha frase favorita do livro, talvez uma das minhas frases favoritas de todos os livros.
Quando a atriz Maggie Gyllenhaal comprou os direitos para levar A filha perdida para o cinema, teve um desafio e tanto em mãos: logo na sua estreia como cineasta (ela escreveu o roteiro e dirigiu o filme), Gyllenhaal tem uma narrativa encharcada de subjetividade, em primeira pessoa, completamente tomada pelo mundo interno da personagem, que está no centro de uma experiência vertiginosa. Ao mesmo tempo, é uma narrativa sem grandes acontecimentos externos. Fora dois ou três episódios mais tensos, entre eles o roubo da boneca, o suspense se constrói nos detalhes. Nas frutas vistosas que a aguardam no apartamento alugado, mas que estão apodrecendo por baixo. Na cigarra que invade o quarto e estoura no travesseiro. No verme da praia que sai da boca da boneca.
Leda parece estar sempre em perigo, sempre atacada: olhares, perguntas, uma pinha que cai com violência e machuca suas costas, formando uma mancha que parece a boca da sua mãe. Mas talvez o ataque maior venha de si mesma: descobrimos, ao longo do livro e do filme, que quando era mais jovem, Leda abandonou as filhas por três anos. Depois voltou, não por preocupação com elas, abnegada, resignada, mas sim por si mesma, porque sentiu que era insuportável viver longe para sempre. Quanto ao tempo que passaram afastadas, Leda diz: foi maravilhoso.
A ideia de que nem todas as mulheres tenham aptidão para um certo exercício de maternidade — Leda diz: “Sou uma mãe desnaturada” — é tão libertadora e importante que, depois de refletir sobre ela, soa ainda mais absurdo que a sociedade tente nos fazer engolir o discurso do destino natural, biológico, inescapável como uma profecia numa tragédia grega. Por tanto tempo e ainda hoje, o modelo de mãe da cultura ocidental foi Maria, a sofredora, a virgem. Ultrapassar esse paradigma parece ser um longo caminho.
Olhar para uma mãe e reconhecer que ela também é uma mulher, que também tem um corpo, que também tem outros interesses e sonhos e assuntos pode ser o primeiro passo para reconhecer que nem toda mulher, afinal, precisa ser mãe para ser completa. Nunca somos completas, sendo ou não sendo mães. Mas todas as mulheres são filhas, disso, sim, não podemos escapar.