A ferramenta milagrosa

Penso no poder que as palavras têm de conectar uma escritora branca, que vive na Europa Central, a um líder indígena da região do Rio Doce, no Brasil
Ilustração: Tereza Yamashita
02/11/2020

Cada leitura oferece uma porta que pode nos apresentar um mundo, mais ou menos distante do que conhecemos, mas, ainda que apenas ligeiramente diferente, sempre um outro mundo. Por esse espaço de tempo, passamos a conviver não apenas com as ideias de quem escreveu, mas também com a forma de concatenar essas ideias. Quando estamos diante de uma obra literária, com sua qualidade poética, essa porta pode levar a mundos ainda mais improváveis, que a gente só poderia conhecer por meio daquele conjunto específico, daquela combinação exata de palavras. Agora o que cada pessoa entende como obra literária pode ser bem diferente. Para mim, inclui os escritos de Sigmund Freud e Charles Darwin; as canções de Bob Dylan, Florence Welch e Cartola; os comentários de Ailton Krenak; os gibis de Maurício de Sousa; e as histórias que meu pai e minha avó contavam quando eu era criança.

Mas mesmo quem é aberto a diferentes experiências literárias, talvez concorde que uma leitura que nos transforme em profundidade é um acontecimento raro. Depende de um monte de variáveis que em muito extrapolam a qualidade do texto. Quando acontece, há uma alquimia que nenhum discurso objetivo é capaz de descrever, mas gosto de algo que o crítico literário Terry Eagleton disse uma vez: “A literatura pode ser tanto uma questão daquilo que as pessoas fazem com a escrita como daquilo que a escrita faz com as pessoas”. E o que a escrita faz com as pessoas depende de toda uma teia em que elas estão inseridas — social, cultural, material, afetiva — e a disposição para conhecer outras.

A literatura de Olga Tokarczuk, escritora polonesa laureada com o Prêmio Nobel de 2018, me permitiu ter uma dessas experiências transformadoras. No romance Sobre os ossos dos mortos, temos como narradora a Sra. Dusheiko, uma mulher velha, cheia de ideias incomuns, que vive sozinha numa pequena vila polonesa localizada na floresta, perto da fronteira com a República Checa.

O enredo do romance de Tokarczuk — um suspense policial misturado a um romance filosófico misturado a uma comédia de erros — é cativante. Os temas que aborda têm relevância incontestável para o nosso tempo. A própria escrita, a construção da narrativa e das personagens, tudo impressiona. Venha comigo, diz a sra. Dusheiko nas entrelinhas da primeira página, venha ver o mundo por esses olhos. Deixe de lado os números e nomes que você conhece — das pessoas, das coisas, até mesmo das doenças —, deixe de lado os mapas e as bússolas que toma como referência, e venha olhar para o mundo de novo, agora assim e assim.

Eu fui. Estive num país que nunca havia visitado antes. Experimentei sensações térmicas, receitas, chás, moléstias, silêncios e barulhos novos. Por mais de duzentos e cinquenta páginas, fui outra mulher — mais velha, mais bonita, mais maluca e mais sabida. Mas não um modelo a ser seguido indiscriminadamente. Alguém mais complexa e mais interessante do que isso. No final, voltei a mim mesma um pouco torta, desalinhada, e algo permaneceu assim desde então, mais ou menos vívido.

Há quase um ano, perto da época em que li o romance, Olga Tokarczuk esteve na Suécia para uma leitura especial, ainda em comemoração do Prêmio Nobel recebido. Na ocasião, ela leu um texto que foi intitulado de O narrador sensível, em que conta um pouco de sua experiência como leitora, desde as primeiras histórias ouvidas na infância, principalmente as histórias lidas ou contadas pela mãe. Fala da história de um bule desprezado pelas pessoas quando perdeu a alça, e da má impressão que essa insensibilidade humana causou na menina que foi um dia. Conta de ver uma fotografia antiga da mãe com o olhar triste, e de perguntar a ela depois, muitas vezes, de onde vinha aquela tristeza. A mãe respondia que era saudade da filha ainda não nascida e assim fazia uma dobra no entendimento do tempo e do espaço.

Talvez por herança dessas conversas com a mãe, Tokarczuk hoje questione o estado pré-concebido de todas as coisas, enquanto fala da importância da literatura, em especial da ficção, ao possibilitar a transmissão de experiências. Essa capacidade imaginativa, de criar histórias que conectem pessoas de diferentes lugares, tempos, idiomas e culturas, é a esperança de uma ponte que pode ser construída. Celebra singularidades, mas também abre espaço para a coletividade e para a experimentação: “Fico feliz ao saber que a literatura tenha mantido maravilhosamente bem o direito a todo tipo de excentricidade, fantasmagoria, provocação, paródia e loucura”, diz ela.

Ilustração: Tereza Yamashita

Tokarczuk lembra que estamos conectados à comida que comemos, à roupa que vestimos, aos livros que lemos. Estamos conectados às pessoas que amamos e às que vivem do outro lado do planeta, e também às que viveram ou viverão em outras épocas. Somos responsáveis pelos rios, oceanos, plantas, animais, por toda a gente. Somos responsáveis pelo mundo, na melhor e mais importante acepção da palavra responsabilidade. Somos responsáveis porque somos parte. “Por isso, acredito que devo escrever como se o mundo fosse uma entidade viva e única se formando constantemente diante dos nossos olhos, e como se nós fôssemos ele — uma pequena potência — uma partícula”, argumenta Tokarczuk. Por “entidade única”, ela não quer dizer entidade uniforme, mas sim interligada.

Então penso em Ailton Krenak e no poder que as palavras têm de conectar uma escritora branca, que vive na Europa Central, a um líder indígena da região do Rio Doce, no interior do Brasil: “(…) fomos nos alienando desse organismo de que somos parte, a Terra, e passamos a pensar que ele é uma coisa e nós somos outra: a Terra e a humanidade. Eu não percebo onde tem alguma coisa que não seja natureza. Tudo é natureza”, diz Krenak no livro Ideias para adiar o fim do mundo.

Penso ainda em Toni Morrison, escritora negra que viveu nos Estados Unidos, também laureada com o Nobel de Literatura — em especial, na sua antologia de ensaios intitulada A origem dos outros, uma coletânea sobre “as possibilidades e responsabilidades da literatura”, diz uma crítica publicada no The Guardian. Para ela, o “risco de sentir empatia pelo estrangeiro é a possibilidade de se tornar estrangeiro”.

O texto de Tokarczuk defende “uma forma de olhar que mostra o mundo vivo, vivido, interconectado, cooperando e pertencente a si mesmo. A literatura é construída sobre uma ternura sensível em relação a qualquer um que não sejamos nós mesmos. (…) Graças a essa ferramenta milagrosa, o meio mais sofisticado da comunicação humana, nossa experiência pode viajar pelo tempo chegando naqueles que ainda não nasceram, mas que um dia recorrerão ao que escrevemos, às narrativas que contamos sobre nós mesmos e sobre nosso mundo”.

De certo modo, essas ideias aprofundam e atualizam o texto O narrador, clássico de Walter Benjamin, grande pensador alemão que, no século passado, já falava da crise da narrativa e da transmissão da experiência, notando algo que se intensificou nos nossos dias. Cada qual à sua maneira, esses autores atribuem à riqueza e à pluralidade das narrativas uma potência de antídoto contra a forma de vida globalizante da atualidade — que, na verdade, segmenta, homogeniza, exclui.

Tokarczuk acredita que somente “a literatura é capaz de nos aproximar com mais profundidade da vida do outro, entender suas razões, compartilhar suas emoções e vivenciar seu destino”. Seu texto exalta o poder da fabulação como forma de estabelecer conexões, conhecer diferenças e expandir sensibilidades. Para Krenak, a “provocação sobre adiar o fim do mundo é exatamente sempre poder contar mais uma história. Se pudermos fazer isso, estaremos adiando o fim”.

Fabiane Secches

É psicanalista, crítica literária e doutoranda em Teoria Literária e Literatura Comparada na Universidade de São Paulo. Autora de Elena Ferrante, uma longa experiência de ausência (2020).

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