Tortinhas ao molho Ginger, by Poulet

Conto de José Castello
José Castello, autor de “Ribamar” Foto: Joaquim de Carvalho
01/04/2002

Nem mesmo meus impropérios, arrancados dos lobos dos pulmões, levaram o garçon Poulet a se aquietar. Foi quando percebi que as palavras não serviam para nada, que elas eram estéreis, que decidi derrubá-lo com aqueles golpes de judoca, encenando posições que substituem a argumentação _ as mãos espalmadas como espátulas, a perna direita erguida à altura do ombro num medíocre passo de balé, o pé entortado para dentro e a cintura a se contorcer, como numa diarréia.

Não contava que o garçon Poulet fosse cair justamente sobre a mesa do deputado, nem que o deputado estivesse ali incógnito, metido num terninho  xadrez, só para negociar a ajuda dos bicheiros a sua campanha para a reeleição. Poulet bateu com a cabeça no tampo da mesa, fazendo a travessa de sopa (um creme de palmitos) rodar como num circo, até que todo o conteúdo fervente se derramou no colo do parlamentar. Ele parecia um primata quando deu um salto e, aos pulos, passou a rodopiar pelo salão. Trouxe consigo a cadeira de palhinha em que estava acomodado, e ela veio presa a seu pé até o meio do caminho, depois se soltou fazendo o barulho de um chicote. E, de ponta-cabeça, foi alojar-se no peito de Anastácia que, de susto, desmaiou. Não resisti a sua face branca, a boca semiaberta, murcha e sem defesas, e a beijei. Era a filha mais moça do deputado, com casamento marcado para a semana seguinte e, por isso, os seguranças voaram sobre mim e bateram até me estourar os miolos. E aqui estou agora, pagando o preço do impulso viril a que cedi.

Poulet veio me visitar essa tarde. “Sei que sou o responsável por tudo o que aconteceu contigo”, lamentou-se. De fato, se ele não tivesse atrasado o pagamento do aluguel em dois meses, eu não teria ido até a Leiteira Bloom cobrar o que me devia e que, ainda hoje, aquele miserável me deve. Trouxe-me umas flores murchas, que deve ter roubado da prateleira dos folheados, de uma daquelas jarras em estilo grego de mercearia que o gerente ali colocou para enobrecer o cardápio da casa. Vieram cobertas de pó, o que denunciava seu delito, mas ainda assim eu me comovi, já que quando adoecemos o mundo inteiro, e não só os folheados, nos parecem mais doces. Nem se deu o trabalho de tirar o paletó branco e a borboleta, e entrou na enfermaria com a pose de quem vinha servir uns salgadinhos, pois garçons de vocação como Poulet não perdem a postura e andam sempre com o braço direito levemente erguido, como se buscassem uma bandeja, ou tivessem acabado de largá-la em algum balcão de serviço.

Depois, deixou na cabeceira da cama um pacote com o emblema dos Bloom, uma íbis dourada contra um fundo estrelado, e disse: “São umas tortinhas para você. Espero que sua dieta permita”.  Não toquei nos doces, que ainda agora tenho a meu lado, mesmo depois que a enfermeira da noite, usando o argumento do excesso de açúcar no sangue, me proibiu de prová-los e, ato contínuo, se ofereceu para guardar. “Deixe isso aí”, eu gritei, com toda a rispidez de que um doente pode dispor; ela ainda fez uma careta, dessas em que as feições quase não se movem e o mal-estar apareceu nos pufffs franceses que saltou pelas narinas. E, só para me torturar com sua simpatia de profissional amestrada, ainda perguntou: “Mais alguma coisa, senhor?” Era como se o garçom Poulet tivesse se apossado do corpo daquela mulher. Não respondi e ela se foi, como as enfermeiras fazem sempre, deslizando pelo corredor que leva aos setores reservados.

Dei um jeito de derrubar a jarra plástica em que a megera havia depositado as flores que recebi de Poulet; elas ficaram no chão, afogadas na borra d’ água, moles e desprezíveis, e minha vontade ainda agora é a de, contrariando as recomendações médicas, levantar-me da cama só para pisoteá-las. Contudo, estou preso a uns fios que medem alguma coisa errada dentro de mim, e tenho medo de tomar um choque, então, não me aventuro. Amassar as flores seria uma maneira de me vingar do garçom, aquele idiota do Poulet com suas maneiras nobres e seu sorriso oco, sem significado. Nada nos garçons tem significado, pois eles são sujeitos vazios; talvez os ternos ridículos que vestem estejam ali só para tapar um buraco, para delimitar o lugar onde alguém esteve e já não está mais. Se tivessem sentimentos, se amassem a si mesmos, não conseguiriam conservar aquela rotina de idiotas. Como um garçom exemplar, premiado inclusive pela Revista Garfo, Poulet não só não contraria essa regra como ainda a reforça. Por isso me parece ainda mais odioso.

Nenhuma idéia prática me ocorre para me vingar de Poulet. Ainda me resta uma chance, porque ele prometeu voltar para uma visita amanhã na hora do almoço, já que estará de folga. É tarde da noite (bem, em enfermarias, quando o sol se põe, perdemos essas noções convencionais); se não é tarde, é como se fosse tarde, pois todos dormem, e aquele senhor barrigudo que está na cama a meu lado, com alguma coisa no baço, ressona em chiados de chaleira. Poulet disse que chegaria cedo, talvez logo após o desjejum (esclareceu que não desejava interromper o exame médico matinal, e que saberá esperar, se for o caso, na cantina do térreo). Não costuma falhar em seus compromissos, nem em suas projeções, mesmo porque sabe que, à menor falha, o gerente se aproveita para lhe descontar um dia de salário. Chegará cedo e eu ainda não terei tomado nenhuma decisão, o que me fará sentir-me como alguém tão estúpido quanto ele.

As tortinhas _ de cuja receita original Poulet garante ser o autor _ ainda me esperam, contrastando com o gosto da gelatina vermelha que tivemos de sobremesa. O molho à Ginger, à base de geléia de damasco e hortelã pimenta, é apetitoso. Mas não: preciso ser mais forte que minha barriga e deixar que elas mofem aqui ao lado, para que o garçom Poulet, confrontado com doces que me trouxe, entenda o meu desprezo. Tenho pena da enfermeira, eu teria lhe dado minhas tortinhas com prazer, não fossem elas, até agora, a única arma de que disponho contra Poulet. Seu próprio veneno, como na homeopatia.

A idéia me perturba, já que a metáfora que usei, pobre e previsível, se transforma numa ameaça. Estariam as tortinhas envenenadas? Teria vindo Poulet me visitar só para fazer (agora movido pela consciência, e não pela sorte) aquilo que, na Leiteria Bloom quase chegou a fazer, valendo-se apenas do acaso? Ao me recusar a oferecê-las à enfermeira, sem querer, ou sem pensar nisso, quem sabe, eu tenha desejado salvá-la. Talvez tenha sido guiado por algum tipo de temor mórbido que a impedi de provar de minha sobremesa. O garçom Poulet sempre se desentende com o gerente porque acha que, se o tomassem a sério, seu lugar seria na cozinha, e não no salão. Mas, como gosta de servir, como nasceu para servir… bem, ele não discute. Todos conhecem, no entanto, seu ressentimento. Ele, o honrado Poulet, o tolo Poulet das piruetas e da mão enorme, na verdade um cozinheiro, ali, travestido de empregado de mesa. Os outros garçons costumam debochar quando Poulet se anuncia como o autor das tortinhas, que são de fato o doce mais procurado pelos fregueses da leiteria; para irritá-lo, eles gostam de dizer que o garçom Poulet roubou a receita de uma revista feminina. Ele sempre se irrita, porque considera que as tortinhas à Ginger são, na verdade, sua obra-prima. Mas, na leiteria, se inventou o mito do Poulet leitor de magazines para donzelas, e ele vem explicar quase tudo.

Mas quem vai levar a sério as manias de um garçom? De alguém que vai à cozinha apenas para levar bandejas cobertas de travessas sujas e restos de comida e retornar com bandeias cheias de delícias cujo sabor ele jamais terá o direito de provar? Alguns garçons, como o Dantas ou o Menezes, costumam freqüentar a confeitaria como fregueses em suas folgas mensais. Trazem a mulher, os filhos, a sogra, e se comportam com a pose de quem está no Louvre, em busca de um Tiziano. Poulet nunca aparece nos feriados, e diz que faz isso (ou não faz) em deferência aos colegas que, sem poder se afastar de seus papéis de profissionais, se veriam obrigados a servi-lo. Não quer encabulá-los, nem humilhá-los, diz. Essa atitude confere a Poulet uma credibilidade, ou respeito, da qual os outros garçons não compartilham. Sente-se superior, até porque tal comportamento, para os observadores mais atentos, vem sublinhar sua posição de autor intelectual das tortinhas _ ou, ao menos, do molho Ginger que as cobre e enobrece.

Mas o sujeito pode ser sério e ser também um assassino. Qualquer um, até Poulet, apesar do jeito canino e do sobrenome de galinha. Que fosse uma canja, ou um ensopado, ou um assado; mas não essas tortinhas com um molho estupendo, que merecem uma assinatura internacional. No entanto, quem tem um sobrenome francês a exibir é Poulet, não eu, que me chamo Silva. Dizem que é falso, que é só um apelido por causa de certa senhora que…  Mas o que isso realmente importa? Não, não posso deixar que essas histórias todas me impressionem, porque assim estaria submetido ao mito de Poulet. É o modo que ele tem de me dominar: deixando que eu me engane com sua aparência imbecil, tão pusilânime e tão imbecil que só pode ocultar alguma riqueza. Não é possível, alguém assim não pode existir; alguém como ele só pode ser um falsificador. É o que costumam pensar na confeitaria. E, com isso, o salvam.

Preciso afastá-lo, de vez, de meus pensamentos. Estou aqui por causa dele e isso já não basta? Até quando vou deixar que continue a interferir em minha vida, a assombrá-la com aquilo que não mostra, mas tem? Na leiteria, diz-se que Poulet é pervertido e que, à noite, freqüenta a cama de adolescentes polacas; dizem que já foi visto no Parque dos Lagos só de cuecas, a correr entre as árvores. Correm muitas histórias, e eu não acredito em nenhuma delas, mas isso não me salva; já que, mesmo sem crer, permaneço retido na esfera do que elas sugerem. Li A arte inútil da sugestão, de M. Barreto, e tive a impressão de que ali encontrava algo a respeito de Poulet; agora percebo que, nas idéias do filósofo capixaba, se guardam, isto sim, juízos a meu próprio respeito. Idéias de que o garçom Poulet participa só como objeto, e mesmo assim de modo muito indireto. Eu, sim, sou o protótipo do sugestionável e Poulet, por mais que eu o odeie, nada tem a ver com isso. Na verdade, não estou preso a ele, mas a uma serpente gosmenta que se enrosca dentro de mim. Minhas idéias são gosmas.

Não vou permitir que o crápula continue a me dominar. Agora chega! Até porque ele não tem consciência de seu poder, não pode saber que passo horas a fio preocupando-me com ele, girando e girando em torno de sua figura deplorável. Só por isso, para celebrar a ignorância de Poulet e provar que ainda me pertenço, me apoio na mesa de cabeceira e luto para me erguer. Quero esticar a mão esquerda que me sobrou livre, abrir o pacote da Leiteira Bloom e, só por deboche, nada mais, só por escárnio, provar uma das tortinhas ao molho Ginger que o garçom fez questão de me trazer. Só uma, não mais que isso. Ainda que estejam envenenadas, uma mordida não me fará mal. Eu sei que posso sobreviver. Não me fará mal, e me trará uma sensação transitória, e açucarada, de liberdade. (FIM)

José Castello

É escritor e jornalista. Autor do romance Ribamar, entre outros livros.

Rascunho