Sabato no escuro

Como as pinturas de Ernesto Sabato podem transformar o leitor de seus livros
01/04/2008

No ano 2000, o escritor Ernesto Sabato fez uma viagem à Espanha. Uma tarde, no Museu do Prado, teve a chance rever as telas de seu pintor favorito: o espanhol Francisco Goya. Nessa visita ao Prado, Sabato limitou-se, na verdade, aos quadros de Goya. Nada mais o interessou. “Nunca olho mais que um pintor”, anota em seu diário de viagem (Espanha nos diários de minha velhice, Seix Barral, Barcelona, 2004). “Fazer o contrário me parece falta de respeito.”

Sabato está sempre surpreso com a pintura de Goya. “O Goya escuro, o feroz, o dilacerante Goya continua me deslumbrando”, anota depois. Dessa vez, detém-se, por mais tempo, diante de uma tela, O dois de maio, de 1814. Durante três anos, perturbado com a invasão francesa na Espanha, Goya pintou obsessivamente a guerra. Telas dolorosas, negras, cheias de decepção e horror, que Sabato, ainda assim, não se cansou de admirar. Naquele momento, abatido não só pela guerra, mas também pela doença, Goya abandona as cores brilhantes, e as troca pelos cinzas, pelos marrons e pelas grandes massas de negro. “Admiro os negros de carvão, de fumaça. Insuperáveis. E os brancos”, Sabato anota. Ao dispensar as facilidades da luz, Francisco Goya se aproxima, como nunca, de um olhar interior. Sabato conclui: nesse momento, “Goya pinta para si mesmo”.

De repente, nos salões do Prado, Sabato é possuído por um sentimento: já não está mais no museu, mas em seu próprio ateliê de trabalho, as mãos dominadas pela ansiedade do pincel entre os dedos, concentrado em pintar. “Compreendo que estou, neste mesmo momento, pelo mistério do imaginário, em meu próprio ateliê”, descreve. Imitando a metamorfose de Goya diante da guerra, ele se transporta para dentro de si — e toma o lugar do pintor espanhol. Está no Prado, mas não está no Prado. Está na pintura.

A imagem do romancista e ensaísta consagrado costuma obscurecer a figura do pintor Ernesto Sabato. A dupla identidade não deveria surpreender. É longa a lista de escritores que, em algum momento de suas vidas, se dedicaram, ou pelo menos se arriscaram, à pintura. O próprio Sabato se dedica a enumerá-la: William Blake, García Lorca, Henry Miller, Leon Tolstoi, Robert Louis Stevenson, Charles Baudelaire, J. W. Goethe, Arthur Rimbaud. No Brasil, são pouco conhecidas, e quase sempre desprezadas, as telas pintadas por Lúcio Cardoso, depois de um derrame cerebral que o impediu de escrever, e por Clarice Lispector, em fases de depressão mais forte. Telas escuras e tensas que, por certo, não surpreenderiam Ernesto Sabato.

Influências
Ler os diários de viagem de Sabato me leva a romper a barreira de que também eu sou vítima: me leva, dos livros, a seus quadros. Telas melancólicas, trágicas mesmo, mas temperadas por um humor sutil, como as telas de Goya que Sabato viu no Prado. Telas, na verdade, diretamente marcadas pela influência do pintor espanhol. A arte moderna nos ensinou a odiar e ocultar as influências. Elas são vistas como ervas daninhas, que corroem e fraudam a obra de um artista. Lembro, no entanto, de José Saramago que, em uma entrevista para a TV brasileira, questionado a respeito do “perigo” das influências, respondeu: “Perigo? Mas nunca escapamos delas. Agora mesmo, ao me fazer essa pergunta, você está influenciando minha resposta!”. A esse respeito, Ernesto Sabato tem uma frase mais simples, mas devastadora: “Nada que é humano é absolutamente original”.

Também a sombra de Edvard Munch, o autor do célebre O grito, é freqüentemente entrevista nas telas do escritor argentino. A influência do surrealismo é notória, ainda que, atento às armadilhas das palavras, Sabato prefira definir sua pintura não como surrealista, mas como “sobrenaturalista”. Relata o escritor que se aproximou do surrealismo não como uma opção, mas porque já o levava “dentro de si”. Ele estava em seus sonhos, em seus terrores noturnos, em seus pesadelos. Não gosta, porém, da palavra “surrealismo”, que porta uma das mais complexas e instáveis noções já criadas pelo homem: a de realidade. Sabato prefere falar, então, em sobrenaturalismo, expressão que toma de empréstimo ao poeta Guillaume Apollinaire. É uma expressão contundente, que se afirma como “o contrário do naturalismo”.

Seja como for, as telas de Sabato — que revisito enquanto folheio El pintor Ernesto Sabato, livro organizado por Miguel Rubio para as Ediciones de Cultura Hispânica, de Madrid, em 1991 — guardam a mesma atmosfera tenebrosa e o mesmo negror de algumas das telas de Goya. Penso, em particular, nos retratos de escritores que Sabato pintou, por certo, para falar também um pouco de si. Nunca mais o farol, retrato de uma Virginia Woolf de cabelos azuis e olheiras defuntas, retida em um universo negro. Nostalgia dos teoremas, apavorante retrato de Jean-Paul Sartre, com a pele de cera e os olhos desviados pela dor. São telas que, se partem de escritores reais, se arremedam o naturalismo, passam suas lembranças por um filtro severo, da ordem dos pesadelos, numa composição da qual aquilo que, por hábito e preguiça, chamamos de realidade está banido.

Em O senhor K., Franz Kafka, com orelhas imensas, envolto em uma capa negra, é um vampiro, mas também um morcego que sofre, como o Gregor Samsa de A metamorfose, de uma incompreensível transformação. O Herman Hesse de Animosa velhice do senhor Demian traz uma pele amarela e quebradiça, que se derramada sobre ossos sem carne; o corpo tem em seu centro dois seios murchos e femininos, que despencam contra a luz de uma vela. O ar enfezado de Fiodor em Dostoievski, tela de 1982, se destaca sobre um cenário banal, mas assustador, desenhado por roupas, presas a pregadores, postas para secar não na luz do sol, mas na ausência de luz da escuridão. O Friedrich Nietzsche que aparece em Deus está morto mantém o porte solene de filósofo, em um mundo vazio, de aspecto lunar, e se encolhe sob um céu negro e é atravessado por vultos que se espalham entre pedras e crateras.

Retrato da morte
A temperatura da morte percorre não só os retratos que Sabato pintou, mas outras de suas telas, sem título, ou com nomes vagos, como Alquimista e Deus dos mortos. Entre elas, me chama a atenção A visita, tela de 1985, um retrato da morte que, elegante senhora em chapéu de penachos e óculos de sol, chega a um mundo já devastado e morto, que parece dispensá-la. As paisagens que se descortinam nesses quadros expõem um mundo igualmente inerte, onde a luz, quando surge, evoca apenas o vermelho dos incêndios, e no qual os perfis são reduzidos a máscaras, couraças que devoraram os rostos que, até pouco antes, as carregavam.

Em algumas das telas, o preto se reverte em um azul mortífero, cheio de tons arroxeados, que traz a nostalgia do escuro. Uma simples natureza morta, uma xícara, algumas bananas, pouco mais que isso, se torna uma ameaça, com objetos suspensos em uma atmosfera na qual a escuridão só tem como limite discreto alguns traços dourados que, como alças fúnebres, fazem o esboço de fantasmas. Mesmo em uma tela como a acadêmica pintura de um jarro de flores, as tensas flores, em vermelho sangue, tremem contra uma paisagem desprovida de forma, borrada apenas pela grande ameaça do negro.

Caminhos sinuosos da leitura: depois de “ler” algumas das telas de Ernesto Sabato, sou levado de volta a suas narrativas. Volto, então, a ler O túnel, novela de 1948 que leio e releio desde os 15 anos de idade. Já nas primeiras páginas, porém, percebo que as telas de Sabato não se desgrudam de minha mente. Não se descolam mais de minha leitura. Elas não só me transformam em outro leitor, talvez mais sensível, talvez menos racional, menos pronto para “entender”, mas transformam a novela que leio, o mesmo livro que já li tantas vezes e que não me canso de reler, O túnel, em um outro livro, ainda mais interminável.

José Castello

É escritor e jornalista. Autor do romance Ribamar, entre outros livros.

Rascunho