Não é preciso ter vocação, nem mesmo uma história a contar, ou vagos flashes a molestar a mente para tornar-se romancista; basta ter coragem. Sublinhei essa frase em meu volume das Divagações e depois ainda a marquei com vermelho sangue, porque ela me pareceu perigosa. Fosse assim, e entre os pugilistas, os policiais de elite, os astronautas surgiriam, sempre, grandes escritores. E o fato é que não surgem.
Um dia, porque estava sem sono, levantei-me em plena noite, fui até a estante e trouxe a bendita frase para mostrar a Zefa. Ela estava nua e parecia me desejar. Talvez porque a sentiu como uma rejeição, talvez para se livrar logo da conversa, minha mulher foi a primeira a me fazer ver que a frase das Divagações era uma tolice. Isso é uma asneira, reafirmou, empurrando o livro de Otelo para o chão. Fosse verdade, e Napoleão teria sido um grande escritor, continuou. Com uma das mãos puxava o lençol sobre os seios, com a outra me apalpava as coxas.
Não sei se Zefa confunde coragem com loucura, mas ainda assim, ao citar Napoleão Bonaparte, ela conferiu uma espécie de estímulo, ergueu uma ponte que me ligou àquela frase. Passei a admirá-la, à frase, não a Zefa; e comecei a sentir um prazer especial em repeti-la, exatamente como faço agora, aqui diante de vocês. Só por isso, para citar a frase de Otelo, aceitei o convite para falar.
Eu sei, eu devia fazer um discurso de aniversário, e me dedicar ao elogio de Rodrigues e seus sessenta anos; ao contrário, venho discorrer sobre uma frase confusa, e se dela me ponho a falar alguma razão deve haver, algum motivo oculto ou intenção inconfessável, não lhes parece? Mas só ouvi o silêncio, o próprio Rodrigues, antes eufórico, mal respirava. Madame Ivani fazia uma forca com seu guardanapo, enquanto Acácio esfregava os olhos. Alguns pigarreavam. A frase parecia mesmo devastadora.
O que você quer, agredir Rodrigues? — Zefa me interrompeu. (Todos sabiam que Rodrigues era considerado um grande escritor e também um grande covarde.) Ou talvez queira agredir a mim, sua mulher, expondo nossas intimidades num jantar solene. (Mas que intimidades estariam guardadas naquela frase? — eu me perguntei.) Talvez queira destruir a si mesmo e à sua imagem de amigo fiel. E pode ser tudo isso junto, ela prosseguiu, visivelmente satisfeita com a elegância da própria argumentação. Seja o que for, disse ainda, me recuso a ouvi-lo. E se levantou, girando o corpo como se fosse tomar a direção da varanda, mas ficou parada no meio do caminho.
Foi Zefa se erguer e um emaranhado de braços fortes me agarrou por trás, torcendo meus pobres pulsos de pianista, e me arrastando para a cozinha. Lá, depois de levar uns socos, me derrubaram no chão, o ladrilho gelado a me espetar a face; de bruços, usando um pano de chão como mordaça, me calaram; e depois me prenderam as mãos e me jogaram num cubículo que talvez servisse de dispensa, pois eu só podia avistar os pés dos armários de fórmica e sentir o cheiro dos condimentos.
Ali, em torno daquela mesa de aniversário, havia meia dúzia de escritores de prestígio. Todos se julgavam tão importantes quanto Rodrigues, ou mais ainda. Adulados pela crítica, reverenciados nas universidades, bajulados, enquanto eu, que nem romancista sou, ali fiquei, amordaçado, com a cara enfiada naquelas lajotas frias, tentando encontrar nas Divagações de Otelo, ou no pouco que dela eu podia recordar, alguma outra frase, qualquer frase, que pudesse me oferecer consolo. Não encontrei mas, ao menos, graças ao esforço de memória, consegui me distrair. O que não era pouco, dadas as circunstâncias em que eu fora lançado.
Se havia uma coisa que me faltava, de fato, era a coragem. Coragem para xingá-los, para esbravejar, já que, amarrado, eu não podia reagir. Coragem para espernear e gritar por Zefa, ou dirigir-lhe insultos por não vir em meu socorro, por me abandonar. Coragem para forçar aquele laço que me prendia as mãos na altura das nádegas e, uma vez livre, deixar para trás aquele bando de desiludidos que, ao comemorar o aniversário de Rodrigues, festejavam também, talvez sem saber, sua própria mediocridade. Assim eu fui pensando, mas a coragem continuou a me faltar, o que talvez sirva para demonstrar a miséria das palavras.
A porta da dispensa se entreabriu. Era Zefa. Não tocou em mim, limitou-se a se ajoelhar, a uma certa distância, como se eu pudesse atacá-la, logo eu, que era ali a única vítima. Por que você sempre estraga tudo? — perguntou. Já não basta a vulgaridade em que vivemos, já não bastam as contas atrasadas e o vazamento na cozinha, já não basta nossa decadência e você ainda tem que estragar a festa de um amigo? Estava mesmo aborrecida. Muito aborrecida. Quis me concentrar no que dizia, e me esforcei para começar a sentir compaixão, mas meu rosto ardia contra aqueles ladrilhos gelados, e minha respiração estava bloqueada pelo excesso de pensamentos. Meus pés já não pareciam meus. Sou alérgico, a pêlos, a poeira, ao mofo. Zefa diz que todos essas repulsas são apenas uma máscara já que, na verdade, sou alérgico a mim mesmo, e a nada mais. Por isso, ela argumenta, não consigo avançar. Se dou um passo, um único passo, o contato com meu próprio ser me causa nojo e, imediatamente, retrocedo. Zefa diz, não sei se é verdade. A rigor, eu nem sei se diz, ou se eu penso que ela diz. Mas alguma diferença faz?
Achei que seria avançar (isso que Zefa tanto preza, progredir, ir para a frente), que seria um progresso se vier a recorrer de novo à frase das Divagações para nela esconder minha impotência. Achei que era ir em frente, e não me apegar às baboseiras dos discursos de aniversário, aproveitar a presença dos amigos, sua atenção sincera, sua confiança, para me dedicar um pouco à verdade. Mas Zefa me disse depois que a verdade não cabe numa festa de aniversário; se pensássemos bem, estamos comemorando algo que se perdeu, que não existe mais, que já não é verdadeiro, ela prosseguiu. Por isso, numa festa de aniversário, a verdade se torna obscena.
Quis fugir, não consegui. Ali fiquei, e já não ouvia o que Zefa continuava a dizer, ela que sempre tem muitas coisas a dizer. Talvez tenha chegado a dormir, não estou certo; mas umas imagens distantes, um lago, uma certa loja de chocolates, a fachada de um hotel, me passaram tão fortemente pela lembrança que, como nos pesadelos, pareciam prestes a me devorar. Quando voltei a mim, estava sozinho com aquelas visões que me comiam. Eu não podia mesmo ter sido escritor, já que escritores devem domar as palavras, e não se submeter a elas. O escritor é um chicote, Otelo disse também, se não estou enganado.
O que fazer quando se está preso numa dispensa e ninguém aparece para nos socorrer? Foi o que continuei a cogitar, sem pressa, mas sempre voltava a pensar em minha falta de coragem que, ali mesmo, atuava com violência. Ali havia uma prova e eu era a prova. Até que alguém entrou. Não era Zefa, era Rodrigues. Não sei o que você pretendeu ao me destruir em minha própria festa, ele disse. Não imaginava que sentisse tanto ódio de mim, mas isso agora já não tem importância. Nada tive a contrapor, pois eu não o odiava. Limitara-me a citar a frase de Otelo, mas se isso pareceu uma manifestação de ódio, eu nada podia fazer. Também, com aquela mordaça, não poderia mesmo falar. Mais uma vez, alguém, agora Rodrigues, antes Zefa, vinha ter comigo para simular um diálogo, quando não havia diálogo algum, já que minha boca estava travada pelo pano de chão. Aquilo era um teatro, eu pensei. As pessoas fazem o que acham que devem fazer, o que é esperado que façam, e não aquilo que desejam fazer. Assim agem, ou assim deixam de agir. Assim atuam, por negação, sem atuar, só representando um desempenho, mas sem realmente desempenhar. Assim era Zefa, assim Rodrigues se comportava agora, assim eram todos. Talvez eu também.
Fechei os olhos. Não sei durante quanto tempo continuou a falar, nem mesmo o que chegou a dizer. Dessa vez sei que não dormi, porque continuava a sentir o chão gelado a me esfriar a face. Ali fiquei, concentrado nessa sensação de dormência, um homem a rastejar. Era isso o que eu era, o que sobrara de mim, um dejeto. Depois vieram, me puxaram para fora e me lançaram num carro. Zefa não estava mais, agora a coisa era entre homens. Rodrigues dirigia. Havia a seu lado um sujeito ruivo que eu nunca tinha visto. Atrás, eu estava prensado entre os irmãos Dantas. Atravessamos a cidade, sem dizer uma só palavra. Até que chegamos ao outeiro.
Puxaram-me pelas pernas até o mirante que dá para o oceano. Parece que vão me matar, pensei. Por uma frase tola, por um comentário literário, por uma citação de Otelo, vão acabar comigo. Algumas estrelas, muito foscas, se espalhavam pelo céu. Tudo era impreciso e eu mesmo não estava certo de estar realmente ali. Puseram-me recostado contra a mureta. Um dos Dantas disse: — Agora você tem que prometer que não repetirá o mesmo erro. Queriam que eu jurasse que jamais voltaria a ler as Divagações. Era um pedido incompreensível. Nunca mais voltará a ler o livro de Otelo, agora foi a vez de Rodrigues dizer. Tentei fazer humor: — Estranho esse seu desejo de aniversário. Mas levei um soco na barriga. Quando a dor começou a diminuir, e voltei a respirar, ainda insisti: — Que mal tão grave Otelo pode causar?
Ali me deixaram, inerte, amarrado à grade, à beira do desfiladeiro. Partiram sem nada mais dizer. Já era manhã alta quando dois policiais, que faziam a ronda motorizada, me acharam. Fui atacado por assaltantes, eu menti. Levaram-me até a delegacia para registrar a queixa e depois, muito solícitos, me deixaram em casa. A primeira coisa que fiz depois de tomar um banho foi pegar meu volume das Divagações. Agora mesmo eu o tenho aqui, sobre meus joelhos, e acho que já sei quase a metade de cor. Algumas semanas mais e poderei queimá-lo. Eu o terei devorado e, se quiserem acabar com o livro, terão que se livrar de mim. Agora eu sou Otelo.