Avancei mais alguns metros, sem ter muita certeza da direção que tomava, até que alcancei Klov, que descia ofegante. “Trate de voltar”, ele me disse. Se tínhamos chegado até ali, argumentei, não tínhamos o direito de desistir. “Não discuta. Dê meia volta e desça”, gritou rispidamente.
Só nesse momento notei que Klov tinha as mãos manchadas por um líquido vermelho, espesso, semelhante a uma gelatina de framboesa. A coisa escorria por seus cotovelos, pingava na barra das calças, como se brotasse de seu interior. “O que é isso?”, perguntei. “Não pergunte. Simplesmente desça”, ele insistiu, me empurrando para baixo.
Como passamos a correr, as pedras deslizavam sob as solas de nossas botas, gravetos estalavam a cada passada, o chão vacilava. Caí várias vezes e, ao me apoiar numa pedra coberta de limo, cheguei a torcer uma das mãos. Anoitecia, o que dificultava nossa fuga.
Eu já estava chamando de fuga, mas de que fugíamos? Por que retornar, eu me perguntava. Depois de tanto esforço, dias e dias de fome e inquietação, lutando para chegar à boca do vulcão, por que voltar, agora que estávamos tão próximos?
Avistei um casebre, de madeira rústica, que eu não vira durante a subida, o que talvez provasse que estávamos perdidos. “É possível que Emerson já tenha chegado”, Klov resmungou, como se aquilo configurasse um grave problema. “Se for ele mesmo, não teremos saída”.
Eu não sabia quem era Emerson, nem por que deveríamos estar perdidos se ele estivesse no casebre, mas aquilo me pareceu bastante perigoso. Estava tudo estampado na fisionomia de Klov, seu aspecto apático, os tremores que lhe sacudiam o peito e aquele líquido vermelho que não parava de lhe escorrer dos poros. Corríamos um sério risco.
“Talvez não seja ele”, Klov considerou. “Talvez eu esteja só com medo”. Aquilo já era um avanço, eu pensei, finalmente um sentimento entrava em jogo, o que podia atenuar nossa situação. “Medo de que?”, perguntei, mas o piloto não me respondeu. E começou a tossir.
Sabia que ele estava acostumado a rotas difíceis, que enfrentava em pequenos aviões militares, zonas de conflitos, atmosferas turbulentas, e não podia imaginar que tivesse tão pouco fôlego para escaladas. Bem, a idéia tinha sido de Klov. Ele, sim, me convencera a subir o Taxos em busca dos condores. Em um péssimo momento, eu decidi segui-lo, pensei desanimado.
Klov queria fotografar as aves, registrar sua estranha plumagem vermelha (os manuais de zoologia não prevêem a existência de condores rubros) e depois oferecer tudo, por um bom dinheiro, à Revista de Geografia. “Vamos ficar ricos. Vou enfim pagar aquelas dívidas”, ele argumentou. Eu também precisava de dinheiro. Flora, ultimamente, exigia de mim uma pensão absurda. E Babo estava bastante doente.
Eu estava ali, subindo o Taxos (na verdade, agora descendo de Taxos) como seu redator. Klov imaginava que faríamos, juntos, um belo livro de arte e já tinha até um título para ele: “Os pássaros de fogo”. Era um mistério, ainda inexplicável, que os condores vivessem sempre à beira da cratera. Algo os atraía e não podia ser o fogo. Mas o mais inquietante era que fossem vermelhos, e não negros, como devem ser os condores.
E agora, quando estávamos tão próximos, Klov desistia. O problema maior é que eu não podia entender a razão. Não sou dado a exercícios físicos, fumo compulsivamente, de modo que ficava sempre para trás. Foi assim, por ter ficado para trás, que deixei de ver o que ele viu. E o que ele viu bastou para fazê-lo recuar.
Mas, olhando para aquele líquido vermelho que escorria de seus braços, eu pensava que talvez minha lentidão tivesse me salvo. “É Emerson. É ele. E agora ele já nos viu”, Klov resmungou. “Mas quem é Emerson, por deus?”, perguntei. Nada respondeu.
Antes que eu pudesse insistir na pergunta, ouvimos um tiro e, sem pensar, nos jogamos na lama. Outras balas zuniram sobre nossas cabeças. “Não se mova”, Klov me disse, “não é conosco”. Mas como acreditar nisso, se as balas vinham bem em nossa direção?
“Ele quer os pássaros, você não entende?”, Klov disse. “Quer empalhá-los e levá-los para o Museu de História Natural”. Com muita dificuldade, consegui virar a cabeça, que enfiara numa poça, e então vi, bem atrás de nós, quatro ou cinco condores que, aturdidos, se debatiam na copa de uma árvore. Estavam tingidos de sangue. “Talvez não sejam realmente vermelhos”, me ocorreu.
Os tiros cessaram, mas Klov continuou imóvel. Arrastei-me devagar e me aproximei. A coisa vermelha tinha encharcado toda a sua roupa e agora brotava de seus cabelos. “Por favor, me diga o que é isso!”, eu pedi. Ele já não conseguia mais falar.
Com grande dificuldade, eu o arrastei para a cabana, que estava vazia. O interior estava coberto por uma poeira grossa, sem indícios de pegadas, ou de digitais. Ninguém entra aqui há muito tempo, eu disse. Indiferente a meu comentário, Klov me pediu: “Agora me deixe sozinho”.
Era um pedido que eu não podia satisfazer, mas Klov (você não o conhece, não ao Klov que eu conheci na montanha) passou a esbravejar com tanta veemência, que acedi. Saí e tranquei a cabana. Sentei-me num beiral de pedras, que fazia a divisa com o abismo, e esperei. Já era noite fechada, uma noite sem estrelas.
Então, surgido não sei de onde, um condor vermelho, reluzente como se tivesse recém saído de um cabeleireiro, sobrevoou a casa e depois se acomodou a meu lado. Por alguns instantes, o bicho me encarou. Quase posso afirmar, embora isso pareça absurdo, que queria me dizer alguma coisa. Ali ficamos, e ele me fitava, enternecido, até que alçou vôo e desapareceu.
Quando voltei à cabana, encontrei Klov imerso numa tina d’água, banhando-se. Assoviava uma canção mexicana. Parecia aliviado. “Assim que eu me livrar desse vermelho, caímos fora”, ele me disse.