O nariz de Ettore Schmitz

Não sei o que se passa comigo, mas minha mente, talvez pelo cansaço imposto pelos anos, talvez pelos drinques que sempre tomo ao anoitecer, ou quem sabe pela enxaqueca crônica
01/10/2001

Não sei o que se passa comigo, mas minha mente, talvez pelo cansaço imposto pelos anos, talvez pelos drinques que sempre tomo ao anoitecer, ou quem sabe pela enxaqueca crônica, é constantemente perfurada por imagens do passado, cenas que, em parte, eu julgava já perdidas ou, mesmo quando ainda me parecem nítidas e presentes, parecem na verdade tão arbitrárias e inúteis que seu retorno me traz, sempre, um sentimento de invasão.

Vou amolar meu leitor com alguns exemplos, para que ele possa entender o mal sem préstimo que me perturba — já que as doenças, mesmo as mais terríveis, fazem sempre algum sentido dentro da lógica silenciosa do organismo. Hoje pela manhã, enquanto escovava os dentes, recordei, com nitidez, certo vagão de trem que tomei, há muitos anos, para ir de Triste até Treviso. Era um vagão de segunda classe, pois eu era apenas um estudante de filosofia que, graças aos trocados miseráveis que ganhava num bar onde servia como copeiro, fiz uma viagem à Itália na esperança de imitar Goethe e Rilke, a quem andava a ler, e quem sabe assim vir a me parecer um pouco com eles. Pois, mal terminara de deitar a borra de pasta sobre a escova, me veio a imagem breve, mas aguda, do momento em que, subindo os dois ou três degraus que me levavam ao vagão, fui empurrado por um rapazote, de não mais que doze ou treze anos de idade, que descia carregando, desequilibrado, um maço de jornais.

Foi só isso, nada mais que isso — e o episódio, de fato, não teve a menor importância, pois nem o rapaz se desequilibrou, nem eu, apesar do susto, cheguei a cair, limitando-me a me encolher a um canto para que ele pudesse desembarcar com sua carga. Nem mesmo vi seu rosto, e ele não me chamou atenção especial por motivo algum, de modo que foi uma dessas cenas, milhares de cenas, talvez milhões de cenas supérfluas e insignificantes que somos obrigado a viver no cotidiano, sem motivo, sem interesse, sem conseqüências, situações que acontecem só porque, como seres vivos, somos obrigados a circular pelo mundo e a nos submeter a suas instabilidades.

Da mesma forma, recordação desnecessária e estéril, lembrei-me ainda agora do nariz em forma de ferradura de Ettore Schmitz, um advogado que, no breve período em que vivi num apartamento alugado na Via das Carroças Sangrentas, na Lapa, foi meu vizinho de porta. Raras vezes nos falamos, nunca lhe dei importância e ele também parecia me tratar como o rapaz desinteressante e vazio que eu, de fato, era. Não me recordo nem mesmo do tom de sua voz, nem posso dizer que sua figura me provocasse simpatia ou, ao contrário, repulsa. Nada me provocava, éramos indiferentes um ao outro, e eu já julgava que nunca mais dele me lembraria (até porque nada há, no caso, digno de recordação) quando, ainda agora, enquanto esperava o troco numa mesa de fundo do Restaurante do Teles, me lembrei, de modo vigoroso e apavorante, do nariz adunco de meu vizinho. E por alguns minutos, já que o garçom se demorava e não vinha com meu dinheiro, ali fiquei, perplexo, atolado nas reentrâncias nojentas de seu nariz, nos pêlos que lhe saíam, espetados e agressivos, com a rigidez dos alfinetes. Um nariz feio, sem dúvida, mas quantos narizes feios já tive a chance de ver em meus enfadonhos anos de vida, e nem por isso eu os cultivo em minha memória.

Então, por que fui me lembrar justamente da narina de Ettore Schmitz? Se houvesse alguma razão, bem, eu a aceitaria com felicidade e até alívio; depois, saciado, trataria de esquecê-la. E cada vez que um órgão alheio me saltasse à mente, o queixo da Madalena, as coxas de Toni Saggio, as mãos peludas de Adroaldo, o busto empinado de Cecília (e vejam quantas partes sem préstimo, nacos desumanos e macabros, emergem em minha memória, quantas peças inúteis, quanta tolice!), bem, cada vez que um dele se manifestasse em minha pobre mente masculina, eu teria uma explicação de algibeira e acharia tudo bem engraçado, ainda que desnecessário. Só que não disponho de explicações, nem sou capaz de me convencer de que, um dia, virei a formulá-las. Tanto que não me livro desse mal-estar, que é o sentimento de que possuo algo que já não domino, ou que jamais dominarei. Algo que vem nas piores horas, ou que fosse nas melhores (quando eu estivesse nos braços de Brígida, a massagista do Delta Clube, ou quando eu mergulhasse na praia do Méier, ou ainda quando Marlene me servisse uma vitela com Chianti), esse atenuantes não modificariam meu mal-estar. Não há razão para me deixar invadir por lembranças tão porosas, e nem haverá — e por isso me contenho e persevero no que me sobra da razão; no caso, destacando-se entre os vultos que emergem de meu poço interior, o nariz de Ettore Schmitz.

Certa tarde, resolvi confidenciar meu pequeno drama a Madame Léscaux, a socióloga que tenho como vizinha, professora emérita, senhora pálida e gorducha, que aparece sempre na TV para fazer comentários sobre os conflitos internacionais. Dizem que é inimiga do presidente, dado que certa vez, em certa cátedra… Mas isso não vem ao caso, na verdade já é mais uma dessas imagens rebeldes que saltam de dentro de mim e depois, como se eu as desconhecesse (e, de fato, desconheço; e, na verdade, eu as vejo como se a outro pertencessem), e depois se interpõem em meu caminho, para me oprimir a lucidez. Em nosso caminho, meu leitor, porque, agora, só a você eu tenho, só você, contra toda a turbulência e inconstância do mundo, diante de mim permanece. Poderia até dizer, num rompante, que para você eu vivo, meu leitor. Mas não devo me desviar de meus objetivos.

Pois bem: no intervalo de uma reunião do condomínio, enquanto fumávamos um cigarro na sala das faxineiras, decidi, num ímpeto (sempre os rompantes, sempre os arrebatamentos a me esganar e me submeter!) resolvi expor meu pequeno drama, que é mesmo lamentável e odioso, à Madame. Ela me ouviu entre pigarros (tem uma tosse rebelde, mas continua a fumar três maços por dia, sem piteira) e depois, puxando-me a um canto, perguntou: — Vou lhe dizer toda a verdade: o mesmo se passa comigo. Falou com aquele seu sotaque asmático e levemente português, as sílabas vindas mais dos brônquios que da mente, e evocando a Leiria, e nada mais disse, voltando à sala de reuniões onde a Sra. Kraise, do 602, expunha um grave problema no sifão de sua cozinha.

Tentei concentrar-me no debate, que se alongou sobre as taxas de condomínio em atraso (entre elas, as minhas) e a maneira mais adequada de virem a ser cobradas. Mas não consegui. O nariz de Ettore Schmitz não me saía da mente, enorme, cada vez mais longo e desnecessário, grudado em meus pensamentos, a dominá-los e, mesmo, a sacudir meu crânio, como uma tempestade interior. Cheguei a temer que meus colegas de reunião viessem a vislumbrar sua ponta a sair por minhas orelhas, ou quem sabe pelas fossas de meu próprio nariz, um apêndice nasal emergindo de dentro de outro, tão real ele me parecia. E ali fiquei, me lamentando pelo modo arriscado como expusera meu pequeno drama a uma desconhecida, ainda mais a uma socióloga — quanto me lembrei de que tanto ela, como Schmitz, são em um caso, ou foram, no outro, meus vizinhos de porta. A chave de minha confissão apressada e, quem sabe, de toda a minha perturbação devia estar nessa coincidência, apressei-me a concluir. Sim, porque alguma explicação, por mais torpe que fosse, eu devia adotar — ou enlouqueceria. Então me apeguei a essa justaposição de papéis, dois vizinhos de porta a me perfurar a tranqüilidade, cada um a seu tempo a me invadir.

Tomei o elevador e, cheio de suspeitas, tranquei-me em casa, fuga que, nas circunstâncias, me pareceu mais prudente. Por vários dias, já que estou aposentado e não preciso cumprir horários, nem dar satisfações a superiores, ali fiquei, isolado do mundo. Meditando, meditando sobre aquela coincidência dos dois vizinhos, e vizinhos de porta — e não preciso dizer que, enquanto meditava, imagens e mais imagens afloravam de minha cabeça, transformada aos poucos num ramalhete de idiotices. Pois bem, concluí só para chegar a alguma conclusão, o problema estava nos vizinhos, e não em mim. Não fossem eles os culpados, Schmitz com seu nariz, Madame Léscaux com sua confissão desnecessária e seu pigarro, e essas imagens que brotavam em minha cabeça continuariam a se multiplicar e, apesar disso, eu as consideraria muito normais e, até, talvez, um sinal de que meu cérebro, apesar da passagem dos anos, continua a faiscar com desenvoltura.

Decidi então que nunca mais falarei com qualquer vizinho. Sei que Madame Léscaux anda espalhando que enlouqueci, que tenho a mente devastada por perturbações psíquicas, quando agora sim me sinto a salvo da demência. Mas sei que ela também sofre do mesmo mal, embora esconda e se faça de comedida, e isso me consola. Agora, quando ando de ônibus, ou caminho pelo parque, ou vou às reuniões do condomínio, fico imaginando quantas imagens saltam e saltam da mente de meus vizinhos. E também quantas imagens desnecessárias se manifestam nas mentes dessas senhoras que passeiam com seus cachorrinhos, ou desses cavalheiros que correm para perder barriga e endurecer as nádegas, ou desses ambulantes que, sem opção para ganhar a vida, vendem o que não têm. Imagens de todos os tipos, incongruentes, desnecessárias, arbitrárias, inconvenientes, tão estúpidas quanto às que, ainda agora, insistem em me perturbar. O que, mesmo sentindo ainda o nariz de Ettor Schmitz a latejar em minha cachola, estufado e repugnante como um repolho, me leva a pensar que, afinal, sou um velho bastante comum.

José Castello

É escritor e jornalista. Autor do romance Ribamar, entre outros livros.

Rascunho