O mundo segundo Luna

Não sou um apreciador de retratos, mas Luna me convenceu a acompanhá-lo até uma galeria onde estavam expostas algumas telas de Castor Vasconcellos, alegando que elas me fariam mudar de opinião
01/08/2001

Não sou um apreciador de retratos, mas Luna me convenceu a acompanhá-lo até uma galeria onde estavam expostas algumas telas de Castor Vasconcellos, alegando que elas me fariam mudar de opinião. Tenho uma rotina inflexível, sento-me sempre à mesma mesa do Café Onetti e jamais deixo de comprar meus ternos na Extravagante — sendo o nome da casa, por certo, só uma ironia. De modo que não acreditei no que Luna me prometeu, mas ainda assim, sem acreditar, fui. E o que agora me pergunto, aqui aboletado nesse picadeiro vazio, é por que diabos eu fiz isso. Quantas coisas faço cujo sentido me escapa!

Gosto de elefantes, por isso aceitei a vaga de guardador de paquidermes que me foi oferecida no Circo Suarez. Devo alimentá-los, escová-los, escoltá-los em seus passeios pelo picadeiro e, nos dias de espetáculo, pela manhã bem cedo, lhes dar uma boa ducha. Lolita, a elefante-mãe, parece gostar de mim e, enquanto a borrifo com desinfetantes, tenho a impressão de que sorri. Sei que pareço uma criança com essas confissões sentimentais, eu que já caminho para os setenta anos. Só mesmo você para ainda arrancar algum frescor desse velho em que me transformei. Ainda bem que você não me abandona.

Mas creio que me perdi. Sim, os retratos, Luna e tudo o mais. Eu dizia que Luna me levou à mostra do Vasconcellos e que, a contragosto, eu fui. Que nada: fui porque quis, já expliquei, só não sei por que quis ir. Mas sou assim mesmo, um sujeito dado a decisões que me contrariam, que faz escolhas impróprias mesmo conhecendo sua inconveniência, que gosta de se contradizer. Não sei por que sou assim, nem que vantagens tiro desse jeito de ser, mas sei que sou. E quando se é alguma coisa, tenso, narigudo ou obeso, isso é definitivo. Ao menos, em meu caso.

Já ia me perdendo de novo. O Vasconcellos pinta uns retratos vigorosos, senhoras de braços roliços prensados em braceletes, homens com o rosto afunilado em cavanhaques de hipnotizador, rapazotes e seus olhos de sapo, mocinhas com saias revoltas, as penugens encaracoladas a lhes revestir as pernas, os joelhos que me doem — os meus joelhos, não os das mocinhas. E olha que hoje fui à fisioterapia, mas de que me servem aqueles raios e massagens, se a dor sempre volta?

Pinta bem o Castor Vanconcellos, mas depois de dez ou quinze minutos eu já estava farto. Ainda me detive para ler um recorte de artigo assinado pelo crítico Max Silva, que avalia a obra do Vasconcellos como uma simples repetição, e que o próprio artista, talvez por desabafo, ou por sarcasmo, afixou bem na porta de entrada. Também não me interesso pelos argumentos de Silva, embora eu pudesse, quem sabe, sentir-me mais próximo dele, já que as telas do Vasconcellos me aborrecem. Mas não: também não é aí que me encontro. Talvez tenha ido à mostra só para me procurar, eu que vivo ansiando por mim, sedento, eu que me falto. Contudo, naqueles retratos, não encontrei ninguém que se parecesse comigo.

Creio que a arte não me interessa, tampouco as polêmicas entre os artistas, nem mesmo os vinhos de segunda classe que esses dândis oferecem em seus vernissages. Nada disso realmente me diz respeito, você sabe disso, então não sei explicar por que fui. Mas fui, é claro que fui. E, contra tudo o que sentia, ali, contrariado, cheio de sono, daquele jeito eu te conheci. Você me perguntou as horas, eu sorri (talvez tenha apenas bocejado e, porque você me flagrou, transformei o bocejo num cumprimento, que você tomou como um sorriso) e desse modo tudo começou. O fato é que bocejei e você, que toma as coisas pelo que elas não são, tratou de se apaixonar. Agora é tarde demais, os fatos logo se transformam no que parecem ser. Triste destino, começam a murchar, a perder a consistência, até deixarem de ser o que são.

Melhor voltar ao trabalho. Está quase na hora do banho de Lolita, eu posso avistá-la em sua baia, parece tensa, cheia de desejos, talvez tenha desenvolvido algum tipo de laço erótico não comigo, que sou só um velho abrutalhado, mas com a ducha que lanço sobre ela, água forte, quente, algum estímulo enfim, nessa vida tão enfadonha de picadeiro. Aqui, vazio, ou daqui mais um pouco, lotado, o circo é sempre igual. É sempre a encenação de um circo.

Ontem estive com Luna e ele me disse coisas que impressionaram. Insistiu que o fato de eu, um aposentado da Secretaria, na classe Y, ter aceito um posto de ajudante num circo só pode ser um sinal. Luna crê que os sinais, como as massas dos pastéis, os balões de aniversário e os cacos descartáveis para refrigerantes, são formas vazias, e tudo só depende do que acomodamos em seu interior. As coisas não são o que são, Luna diz, são o que carregam. Um embrulho não é um embrulho, mas os sapatos nele embrulhados. O vestido de Dona Lili não é um vestido, mas Dona Lili que, por acaso, usa aquele vestido. Uma bandeja não é uma bandeja, mas uma bandeja de sorvetes, ou de pudins, ou de taças de vinho — e a bandeja, em si, é o que menos importa. Isso Luna me diz. E eu, confirmando sua tese, adoto sua explicação.

Pois o que define o homem, o que lhe dá mobilidade, Luna diz, é a ausência de si mesmo. Nenhum homem é, ele continua, e só por isso, porque não é, pode chegar a ser. Tudo vem do nada, diz ainda, e essa idéia de Luna me deixa muito esvaziado. Eu, que nada carrego, que vou fazendo as coisas só por inércia, para não adormecer, para fazer o tempo passar, eu, nesse caso, o que sou? Assim me sinto: um envelope a ser preenchido, um invólucro, uma casca. Assim Luna me deixou, ou me fez. O mundo, segundo Luna, é só um estojo, um frasco, um invólucro, um vasilhame. No entanto, argumentei, o mesmo se passa com as baratas: se pisamos numa barata, a barata não é a borra branca que dela escorre, mas a casca em que se torna. Luna pareceu gostar de minha comparação, que na verdade não veio desmentir, mas reafirmar sua tese. Sou assim: sempre que tento me defender de uma posição, acabo me tornando seu cúmplice.

Entro na baia de Lolita. Ela parece não me reconhecer. Estará doente? Elefantes também são dados a melancolias. Os animais só reproduzem os sentimentos humanos porque nós lhes atribuímos sentimentos humanos; na verdade são apenas embalagens de nossos próprios sentimentos, que colamos sobre eles, como selos. Quem vai entender o que se passa dentro de um elefante? Luna diria que nada se passa, que um elefante, também esse, Lolita, é só um elefante, quer dizer, uma imagem a recobrir uma ausência. Nós os preenchemos quando os humanizamos, quando os adestramos, quando os castigamos ou alimentamos ou banhamos. Ao alimentar Lolita, o elefante sou eu, pensei, mas a idéia, embora cativante, e até literária, me pareceu incorreta sem que eu pudesse entender a razão. Porque não sou um elefante, sou só um guardador de paquidermes. Saber disso não me basta?

Lembro-me de um dos retratos de Castor Vasconcellos, o de Lísias, aquele político do Império que se celebrizou por seus aforismos. Tenho, em algum lugar de minha biblioteca, um exemplar das Meditações, de Lísias Castiollo. Nunca o abri. (Quando compramos um livro, não compramos o conteúdo do livro, mas só a embalagem, aquelas páginas e mais páginas envoltas em capa dura.) Pois, no retrato feito por Vasconcellos, Lísias traz também, acomodado sobre o colo, um exemplar de suas Meditações. O livro está fechado, mas Lísias, que é o autor, não precisava lê-lo. Contudo, ele parece sentir certo desdém pelo livro, o que leva a crer que talvez o tenha renegado. No entanto, as Meditações são o único livro que Lísias deixou, envoltório do homem que se foi. Seu revestimento, sua casca, mesmo que encoberta pelo desprezo.

É impossível que todos esses sentimentos estejam num retrato, Luna me diz. Essas coisas você pensa; mas um retrato não pensa. Isso talvez prove a qualidade de Castor Vasconcellos, pensei, mas talvez também não signifique nada além do que significa: que aquela é uma tela composta de muitos sentimentos, todos artificiais. Sentimentos que lhe foram acoplados, próteses, e a arte não passa disso: de um substituto. O problema é que talvez não exista aquilo que a ela substitui. Uma tela, Luna diz, é só um branco. O mundo é só um nada e esse falatório — inclusive essa nossa conversa, minha querida — parece muito intensa quando tem a consistência de um sopro. Daí eu preferir Lolita que, silenciosa, ergue a tromba para que eu possa, suspendendo minha vassoura de piaçava que cheira a anti-sépticos, escovar seus dentes. A espuma se derrama de sua boca e, em placas, pinga sobre minha cabeça. Nela mergulhado, tenho o sentimento de existir, o que, segundo Luna, pode ser só a melhor maneira de blefar.

José Castello

É escritor e jornalista. Autor do romance Ribamar, entre outros livros.

Rascunho