O falso pessimista

O olhar de Samuel Beckett sobre o mundo humano não é decadente; ele escreve para enfrentar impasses e tira disso uma força incomum
Samuel Beckett, autor de “O inominável”
01/07/2008

Assim que me engajei na montagem de Esperando Godot, de Samuel Beckett, dirigida por Flávio Stein, ouvi de alguns amigos sinceros uma advertência. Saberia eu, de fato, o que estava fazendo? Teria consciência do abismo que tomava como caminho? Esses amigos admiravam minha coragem por me envolver na encenação de um texto tão melancólico e depressivo, diziam. Perguntavam-se, no entanto, se era o momento adequado para isso. “Beckett é triste demais, e nossos tempos já são bem duros”, um deles argumentou. As raras montagens de Esperando Godot teriam provado que não se pode montar Samuel Beckett sem tocar no insuportável e — para citar o próprio Beckett — no inominável. E, por isso, esses amigos queridos se preocupavam comigo. “O mundo de hoje exige idéias mais práticas e mais simples”, outro me disse. Ah, a amizade que, tantas vezes, se parece com a incompreensão!

Meus amigos não estão sozinhos em sua aflição. Samuel Beckett (1906-1989) é sempre incluído no rol dos grandes pessimistas e dos incorrigíveis melancólicos. Convidar alguém para assistir a uma montagem de Beckett é, acredita-se, fazer um convite para o desassossego e o desconforto. Certo: se você quiser, aceite, mas não marque um jantar para depois, pois não conseguirá fazer a digestão, diz-se. As provas disso começariam em sua biografia. Nascido em Dublin, Beckett passou, no fim dos anos 20, uma temporada em Paris. Lá tornou-se amigo de James Joyce, a quem chegou a servir como secretário. De volta à Irlanda, ele tentou uma carreira universitária mas, com um temperamento introspectivo e disperso, não se adaptou à vida acadêmica. Estabeleceu-se em definitivo em Paris — como um fracassado, ou mesmo um fugitivo, em geral se pensa — no ano de 1938. Talvez ele mesmo, Samuel, pensasse isso. Mas o que isso importa?

Na grande trilogia narrativa que Beckett escreveu no início dos anos 50 (Molloy e Malone morre, ambos de 1951, e O inominável, de 1953), diz-se ainda, evidenciou-se seu interesse (doentio, talvez) pelos monólogos, circulares e fechados, que ilustram o isolamento e o tédio do homem. De fato, os personagens de Beckett se movem dentro dos limites estreitos do conhecimento. Experimentam, muitas vezes, o abismo que separa o homem de seus semelhantes. E se asfixiam na grande garganta de silêncio em que a linguagem se evapora. Mas chega! Daí afirmar que Beckett foi um pessimista vai outro abismo ainda maior. Ver o mundo como ele é, ainda que o pior dos mundos, não significa desistir desse mundo. Muitas vezes, não ver é a forma mais rápida de fugir.

O gosto de Beckett pelo silêncio, e também pelas grandes falhas e hiatos, que marcam Esperando Godot, seu mais célebre texto para o teatro, pode — e deve! — ser visto de outra forma. Tanto na prosa, como na dramaturgia, Beckett trata, de fato, do inominável — daquilo que nome algum consegue designar. É da falência das palavras, de seu fracasso primordial, dos limites estreitos que definem o existir, portanto, que ele faz sua arte. Mas seu olhar sobre o mundo humano não é pessimista, ou decadente. Ao contrário: se ele escreve para enfrentar impasses, tira disso uma força incomum. Uma irresistível — ainda que precária, ainda que perplexa — vontade de viver. Parece com uma dor, parece insuficiente e perigosa, mas a vida não é isso?

Seu interesse pela palavra exata e pela precisão — como em outro suposto pessimista, João Cabral de Melo Neto — é, na verdade, indício de que a escrita, para Beckett, era uma faca (uma “faca só lâmina”, diria Cabral). Instrumento perigoso, mas também frágil, que, em vez de significar e explicar, perfura e interroga o real. O pessimismo de Samuel Beckett, para muitos, se estampa na fisionomia que ele ostentou na maturidade. Rosto fino, olhos azuis e aguados como que diluídos em uma tempestade, pele riscada em grossas rugas (como cicatrizes), sobrancelhas em desalinho, nariz em aguilhão, Beckett carregaria no próprio rosto as marcas de um homem que, porque nada mais esperava além da glória literária, seria a própria imagem da decepção.

Além da máscara
A hoje clássica biografia do escritor assinada por James Knowlson (Beckett, um ilustre desconhecido, lançada originalmente em Londres e inédita no Brasil) mostra que existe muito mais sob essa máscara tão pobre. Knowlson realça a imagem dissonante de um Samuel Beckett piadista, com sentimentos fortes e alma calorosa, capaz de debochar do mundo e de retirar do sofrimento um impulso para viver. Beckett não foi só um homem que sofria de uma “vertigem metafísica”, embora isso também seja verdade. Insiste-se sempre na vertigem, como que para afastá-lo de nós e enfurná-lo na galeria distante dos “homens especiais”. Talvez dos loucos, ou dos doentes. Mesmo que seja dos gênios…

Lida nessa perspectiva, de um Beckett solitário e sofredor, Esperando Godot seria a prova cabal da inutilidade da espera. Seja Godot um deus (god) ou o que for (quem sabe não é mesmo Pozzo?), ele seria um inútil — alguém que gasta seu tempo e sua vida aguardando alguém ou algo que nunca chega. Mas é talvez porque nunca chega, e prolonga a espera ao paroxismo, transformando-a no próprio motor do existir, que a presença/ausência de Godot se torna poderosa. Sim, podemos (devemos) ler (e assistir) Godot de outra maneira: a peça não é só um sobrevôo sobre a falta de sentido da vida, ou a falência de existir. É também isso, é claro, mas não se detém aí, pois Beckett não era de desistir por tão pouco. Se Vladimir e Estragon persistem em sua espera, ela já não é um fracasso, ou uma inutilidade — ela é a própria face do real. Vivemos assim, em trânsito e à deriva, aguardando sempre o passo seguinte, e é isso o que nos movimenta. Se alguns aí afundam por falta de coragem, isso pouco diz a respeito das possibilidades do homem.

Não foi fácil chegar a Godot. Em 1941, Beckett se engajou na resistência ao nazismo. Tempos depois, foi obrigado a se refugiar no campo. Empregou-se como agricultor, e em troca recebia apenas um prato de comida. Foi só no fim da guerra que Beckett, enfim, tomou posse de sua literatura. Foi tudo muito difícil. Em 1950, sua mãe morreu. Por um bom tempo, ele viveu só de uma pequena herança paterna. Ele e sua mulher, Suzanne Deschevaux-Dumesnil se instalaram em um modesto apartamento da Rue des Favorites, em Paris. Levaram uma vida modesta. A primeira montagem de Esperando Godot estreou em 3 de janeiro de 1953, no Théâtre de Babylone, com direção de Jean-Marie Serreau. Godot significou, na vida de Beckett, uma virada. Só depois dela, conseguiu comprar um pequeno estúdio e ter uma rotina mais tranqüila de escritor.

Mas também Godot está cercada de lendas. A montagem mais célebre da peça, e talvez a mais radical, aconteceu em 1957 quando a San Francisco Actor’s Workshop a encenou em uma penitenciária, para uma platéia de quase quinhentos prisioneiros. Os presos aplaudiram a história de Vladimir e Estragon com grande entusiasmo. Desde então, esses aplausos são apresentados como mais uma prova de que Godot trata de um mundo sem saída. Um mundo vazio e absurdo, como o inferno dos presídios. Absurdo? Eis outro rótulo com que, muitas vezes, se reduz o trabalho de Beckett. Teatro do absurdo, se diz. E assim — mas que grande alívio! — empurramos Samuel Beckett para bem longe de nós.

Escritor vital
Reli várias vezes a peça de Beckett. Assisti a dois meses seguidos de ensaios dirigidos por Flávio Stein. Vi e revi e revi — e quanto mais me envolvi com a peça, mas me convenço de que Beckett não só não foi um pessimista, como é um escritor radicalmente centrado em nosso tempo. Antes de tudo: um escritor vital. O avançar dos anos arranca Godot da lenda do absurdo e a joga em nosso colo. Vladimir e Estragon são, por certo, dois homens espremidos e tensos. Mas todos estamos limitados por uma existência curta, recursos instáveis e idéias que quase nunca dão conta do real. E nem por isso Vladimir e Estragon desistem. Não, eles não se apóiam em ilusões, não se salvam através da rebeldia cega ou, ao contrário, da pura negação da realidade. Ao contrário, encaram e examinam, com grande avidez, o mundo que têm. E mais ainda: eles o interrogam, o ridicularizam, o testam, o desafiam. Em uma palavra: eles o vivem!

O mundo em que vivem está além de qualquer síntese, de qualquer fórmula científica, de qualquer explicação filosófica, de qualquer ilusão religiosa. Tudo o que têm são pedaços, algumas certezas imprecisas, intuições não confiáveis, breves insights — e um grande fardo de dúvidas. Fardo, ou tesouro? Contudo, esse mundo tão estreito não os leva a desistir. Ao contrário: ele os leva, sempre, a prosseguir. Os obstáculos não são barreiras que impedem seu avanço. Em vez disso, são pedras e argamassas, os únicos materiais de que dispõem para, às cegas e sem muita certeza de nada, construir não sei se o mundo, mas algo que se assemelha ao mundo. E com que energia eles fazem isso! É nesse construir — inventar — que Vladimir e Estragon vivem e se inventam. Isso é, numa palavra, o existir.

Penso, por contraste, em Pozzo, com sua arrogância, e em Lucky, com sua queda e seu tremor. Os dois, sim, acreditaram em extremos, um no poder que se afirma a chicotes, outro na submissão de que se pode tirar pequenas vantagens, migalhas. E, justamente porque acreditam, eles se destroem em sua própria fé. Vladimir e Estragon não têm fé, não têm certezas, não apostam em nada. Vivem do que lhes cabe, ou até do que lhes resta — desse tão pouco, desse alimento tão fraco que é o humano. E, por isso, mesmo perdidos no atoleiro das palavras — pois a linguagem é um grande magma no qual nós, homens, nadamos, em braçadas trêmulas e vãs — , mesmo ali, quase afogados, respiram, debatem-se, riem de seu destino. E disso tiram sentido, um sentido pálido, insuficiente, quase sem sentido — algo que se pode chamar, sem a ilusão de qualquer adjetivo ou objeto, apenas de viver.

Viver como? Viver de quê? Viver para quê? Ora, viver — e isso não basta? Podemos dar respostas parciais, precárias, incertas, sem nos iludir de que venham a bastar. Podemos arriscar alguma esperança, mas não devemos levá-la tão a sério. Podemos tão pouco, só palavras gaguejadas, como Vladimir e Estragon em seu diálogo cheio de cortes. E isso, e não outra coisa — armas, conquistas, guerras, submissões — isso, apenas isso, é poder. Poder humano, que pouco pode, quase nada pode. Poder que, reduzido muitas vezes ao silêncio e até à impotência, resume, ainda assim, essa palavra simples e bela que é viver.

Nota
Texto de apresentação para a montagem de Esperando Godot, de Samuel Beckett, realizada por O Círculo/Núcleo Teatral e pelo Ator Cômico Produções Artísticas. Direção: Flávio Stein. Com: Mauro Zanata, Rosana Stavis, Leandro Borgonha e Karina Pereira. Cenografia: Alfredo Gomes. Espaço cênico: Guita Soifer. Iluminação: Waldo Leon. Fotografias: Milla Jung. Produção: Joseane Zanatta. A peça esteve em cartaz, durante o mês de julho, no Auditório Salvador Di Ferrante, do Teatro Guaira, em Curitiba. Retorna à cena entre 14 de agosto e 7 de setembro, no Teatro do Ator Cômico, Curitiba. Dramaturgia: José Castello.

José Castello

É escritor e jornalista. Autor do romance Ribamar, entre outros livros.

Rascunho