O enxadrista Xavier

Há um elemento, crucial, que marca a literatura de Valêncio Xavier: o gosto pelo jogo
Para José Castello, Valêncio Xavier tem um escrita rebelde, oque é uma qualidade em um universo morno em que muitos escritores se deixam guiar pelas leis do mercado
01/05/2001

Há um elemento, crucial, que marca a literatura de Valêncio Xavier: o gosto pelo jogo. Há uma segunda substância, mais invisível, que se acopla à primeira: a inquietude. Divertimento e desassossego compõem, de fato, um par um tanto paradoxal. Isolados, perderiam a força. Acasalados, como Valêncio os quer, se tornam explosivos e produtivos. Gostar, não gostar, esses são efeitos subjetivos, que variam de pessoa a pessoa, e variam numa mesma pessoa ao longo do tempo. Durante um par de anos, eu não conseguia ler os romances do português José Saramago. Meus amigos me diziam: é fabuloso, é imperdível. Eu me esforçava, comecei a ler dois ou três deles, deixei a todos pelo meio. Até que, um dia, ganhei de presente o Ensaio sobre a cegueira. Na manhã seguinte, viajei a trabalho para o Recife e, numa decisão impulsiva, que se avizinhava da teimosia, coloquei o romance de Saramago em minha sacola de mão. Ao desembarcar em Pernambuco, algumas horas depois, eu estava abalado: o livro me arrebatara. A barreira que me separava de José Saramago, repentinamente, se rompera, e a partir dali voltei a muitos de seus livros, entre eles alguns que me haviam entediado. E desde então não os abandono mais.

Portanto, um mesmo leitor hoje gosta, amanhã não gosta, não sendo o gosto uma medida para se aferir as qualidades de um livro. Gostando ou não dos “romances” de Valêncio Xavier, somos obrigados a neles enxergar um elemento, latente, mas corrosivo, que anda escasso em nossa literatura: o desassossego. Valêncio parece (mas só parece, embora às vezes ele mesmo afirme isso) não levar a literatura a sério. Vai montando seus livros a partir de frases soltas, recortes, figuras, peças de propaganda, nacos enfim da era contemporânea ou recente, como quem arma um quebra-cabeças — e aqui entra o segundo elemento, o mais superficial dos dois, o jogo. O que talvez o próprio Valêncio não perceba é que, atuando assim, como quem realmente não se leva a sério, vai compondo, devagar, uma imagem ímpar de si. Todo escritor fala de si, mesmo quando se despreza; e é ao falar de si que, por contágio, fala do mundo em que está metido. Assim também é com Valêncio Xavier, enquanto ele diz que apenas brinca; assim se dá em seus livros, de aparente leveza, sob a qual se escondem uns bons sustos.

Há poucos dias, encontrando-me com Valêncio, acidentalmente, nos estúdios de uma televisão, eu lhe disse: “Fui escalado para fazer, num debate de idéias, a defesa de seus livros”. A face de Valêncio se avermelhou (e, os que o conhecem, sabem como do rosto de Valêncio, quando ele está à beira de se exaltar, emerge essa carranca silenciosa, entre o susto e a fúria). A máscara disse: “Não precisa”. Rebati: “Não é questão de precisar, mas de querer”. Foi duro comigo: “Mas eu não quero que você escreva. E está decidido”. Só que o desejo não era dele, era meu. Valêncio é um homem falante, que ocupa muito espaço apesar de seu corpo ágil, e de seu jeito afetuoso. Aquilo não era uma censura, ou uma ordem, era um pedido de clemência. Acontece que Valêncio gosta de andar na contramão; e os que andam na contramão não gostam de ser defendidos, preferem ter todo um mundo contra si.

Ali estava, à minha frente, materializado no próprio autor, um efeito da literatura de Valêncio. (Todo escritor terminar por ser, ao fim, efeito do que escreve, personagem do que escreve. Kafka (ou K) personagem de Franz Kafka. Joyce, efeito ou até personagem do Ulisses, do próprio Joyce.) A literatura de Valêncio Xavier tem algo de bruto, de primitivo, até de selvagem — e por isso fere. Primeiro, ela perturba por seu caráter anti-literário, sua falta de estilo, sua radical despretensão — quase como se debochasse do universo literário e, assim, o colocasse sob suspeita. Valêncio tem uma relação dessacralizada com a escrita, tem quase nojo à escrita, o que é uma vantagem num tempo em que, para adorná-la com o que não é, muitos a encobrem com cifras, postos em listas de best sellers, ou honras mundanas. Sempre tive uma visão elevada da literatura, e é paradoxalmente por isso que admiro a postura crua, rasteira, de Valêncio Xavier, sua quase desfaçatez, que na verdade expressa uma grande diligência. Seu desleixo aparente é preciosismo. Sua escrita impessoal, composta de textos alheios que ele recorta com paciência em revistas antigas e almanaques, é na verdade extremamente pessoal — bem mais pessoal que muitas confissões oferecidas por aí como obras literárias. Não é preciso, aliás, ser confessional para ser pessoal — bem ao contrário.

Valêncio quebra muitos valores do cânone oficial: no lugar da palavra bem dita, ele oferece a palavra do outro, anônima, repetitiva, avulsa como num jogo; no lugar do estilo, ele nos apresenta um embaralhamento, uma montagem, um anti-estilo; pega temas quase banais, como o universo falsamente freudiano de Minha mãe morrendo, seu livro mais recente, não para fazer literatura de idéias, para “fazer drama”, mas para arrancar idéias da literatura. Valêncio Xavier tem uma escrita rebelde, o que é uma qualidade num universo morno em que muitos escritores se deixam guiar pelas leis do mercado, pelas promessas do sucesso e pela comodidade oferecida pela mediania. Tem uma escrita “juvenil” na ponta de um século dominado pela solenidade das vanguardas, que sempre se viram como proféticas. Se há uma coisa que Valêncio não é, é mediano. Ele está sempre a repuxar a escrita para extremos, jogando com nossa surpresa, contestando o caráter nobre que em geral se empresta ao texto literário, fazendo das palavras, disparos. Ele escreve como um cineasta: recorta, ilumina, acopla, monta. É do contraste, da surpresa, da assimetria, que suas palavras arrancam força. Elementos que se deslocam, que se enfrentam, que saltam uns sobre os outros, que se comem, como num tabuleiro de xadrez.

O que ele talvez não perceba é que, assim agindo, promove uma espécie de purificação na literatura brasileira. Quebrando os cânones, os limites do literário, o bom gosto, Valêncio alarga nossos limites, revira esses mesmos cânones pelo avesso e reafirma aquilo que é a base, a raiz, da literatura: o exercício do tudo dizer. Valêncio faz seus livros de figuras, receitas, gráficos, fotografias, reclames, embalagens e tudo isso, uma vez conectado à esfera de um “romance”, romance se torna, literatura é. Ele se arrisca no pueril, no sofrível, no ocasional, alargando assim as fronteiras do literário de tal modo que elas passam a englobar toda a escrita, e mesmo a ultrapassar. Não sei se Valêncio Xavier é um grande escritor, isso é algo que só futuro talvez chegue a dizer. Sei que ele tem uma visão larga, audaciosa, da literatura, que escreve para desafiá-la, que com ela faz o que bem entende — e, agindo assim, exerce como poucos aquilo que há de mais sagrado para um escritor, que é sua liberdade.

José Castello

É escritor e jornalista. Autor do romance Ribamar, entre outros livros.

Rascunho