O abraço aflito de Bacon

Um mundo nervoso e excitado pede uma literatura que não se contente com a placidez das superfícies
01/12/2007

O realismo está na ordem do dia, não só na literatura, mas no cinema, no teatro, nos jogos on-line, nos parques temáticos, na televisão. A realidade se tornou objeto privilegiado de consumo: prolifera o desejo de mapear e devorar o mundo real. Quanto mais realidade, melhor, esta é a idéia. Mas qual realidade?

Na literatura dominam, hoje, duas vertentes. A primeira, dos candidatos a best-sellers, que escrevem para a leitura fácil e digestiva, para as listas de mais vendidos, para as livrarias de aeroportos e sempre com um olho nas adaptações para o cinema e a TV. A segunda, a dos novos realistas, jovens, ou não tão jovens, que investem energias em uma literatura-espelho, que deseja refletir as imagens do mundo, exibi-lo “tal qual é” e, assim, engoli-lo. Não para transformá-lo, é preciso dizer, mas para regurgitá-lo.

Experimentamos, em conseqüência, uma náusea do real — overdose de fatos e de imagens, de notícias e de escândalos, de eventos e de refletores, que beira a vertigem. Um transbordamento que, em vez de nos ligar ao mundo, nele nos afoga. Asfixiados pela realidade, nem por isso estamos mais vivos. Ao contrário: mais distantes da vida nos sentimos.

Cada vez que leio uma narrativa realista, penso no pintor irlandês Francis Bacon (1909-1992), um de meus pintores preferidos. Ele se definia como um “obcecado pela vida”. A paixão pela existência está em suas telas que, indiferentes às experiências de vanguarda do século 20, perseguem uma nova figuração. Nelas, a realidade aparece não fixa e congelada, como no passado, mas, ao contrário, em estado de fervura e de ardência.

Lembrei-me de Bacon, outro dia, enquanto relia, em minhas oficinas literárias das segundas-feiras, o genial Jerusalém, romance do português Gonçalo M. Tavares. Penso, em particular, no Capítulo VII, dedicado aos personagens Hinnerk e Hanna, em que se fala do modo como os sentimentos (no caso, o medo) penetram, invadem, “se materializam” no corpo e dele tomam posse.

Hinnerk, o personagem de Gonçalo, “é” suas olheiras, sombras que lhe conferem a aparência de um “animal noturno”. Não: as olheiras não podem ser reduzidas a cicatrizes do sofrimento. “Na pele concentrada debaixo dos olhos de Hinnerk ocorrera algo de mais complexo”, Gonçalo escreve, “uma fusão entre diversos fatos da sua biografia, transformados, ao longo dos anos, numa matéria comum, matéria assustada”.

Interesso-me pela expressão, matéria assustada. Eis uma eficiente definição da realidade. Matéria trêmula, instável, que se movimenta — viva enfim, como a respiração, os batimentos cardíacos, ou os movimentos involuntários do intestino. Realidade, portanto, que desmente o realismo de mármore e de poses dos realistas.

Gonçalo M. Tavares fala, há muito, de uma realidade “fria”, regida pela repetição, a que se contrapõe uma realidade “quente”, onde tudo é transitório. A primeira é previsível e, portanto, falsa. A segunda é uma realidade tensa e assustada, que se debate com a verdade, ou com a impossibilidade de verdade. Ela surge, também, nas telas de Francis Bacon.

Na literatura, esta diferença não se oferece facilmente, embora escritores como Clarice Lispector, Fernando Pessoa e o próprio Gonçalo ajudem a desvendá-la. Pode ser muito útil para os escritores, então, tomar alguma distância — por exemplo, na pintura. Por que não? As telas de Bacon oferecem um estupendo posto de observação das estratégias literárias contemporâneas. Ponto de contraste, em que se desmonta a verdade das imagens nítidas, dos perfis irretocáveis e dos diálogos fluentes.

Não: a realidade, em vez de fluir, avança aos trancos. O real está mais na obscuridade que na clareza. Está mais na volubilidade que no fixo. Surge no repuxo do interno que, rompendo a matéria, deformando-a, se torna matéria também. Quase sempre preferimos nos consolar com a idéia da solidez. Do previsível e do constante. Se a literatura pode estabelecer algum vínculo com o real, contudo, ela deve estar preparada para o que não é capaz de capturar. Deve estar pronta para a ruína do natural, que é, enfim, o que nos resta para definir o próprio natural.

Bacon renunciou à lógica natural, que desenha um mundo sempre enquadrado em sentidos, em “fases”, em hierarquias. E que tende, em conseqüência, à classificação e ao cadastramento. Mundo de burocratas e de escriturários, de projeções e de balancetes. O mundo real, ao contrário, se inclina (e cada vez mais) para a pulverização e para a explosão. O natural não é coerente, não é previsível — em resumo: não é natural. Só a partir dessa inversão, que exige coragem, a literatura pode, enfim, se equipar para o enfrentamento do real.

Os pensamentos e sentimentos encarnados no corpo — como o medo que, em Jerusalém, se manifesta nas olheiras de Hinnerk — oferecem um caminho mais verdadeiro (embora mais difícil) em direção à realidade. Volto a Francis Bacon que, desde jovem, sofria de asma. Respiramos sem pensar, mas os asmáticos, a cada inspiração, incorporam, junto com o ralo ar que conseguem tragar, um pouco de pensamento e de dor. Só quando o natural fracassa, ou quando se revela instável e perigoso, ele se torna vivo. No mais, ainda estamos na esfera das máquinas, das estratégias de venda e dos programadores.

Penso, ainda, no genial estudo que Bacon realizou do retrato do papa Inocêncio X, pintado por Diego Velázquez. Ao contrário de Velázquez, impecável retratista da corte espanhola, Bacon não se interessou pela imitação do real. Sua relação com o real não se dá pela cópia, ou pela reprodução ponto a ponto, mas, como ele dizia, “por convulsão”. São os movimentos internos no modelo (se é que alguém pode se engessar nesse papel, mais apropriado a estátuas e a manequins) que tomam a frente da tela. A vida se transforma em cataclismo: ela se define não pelo enquadramento, mas pela agitação.

Nada da fraqueza (e algumas vezes, estupidez) que delineia as paisagens e os retratos realistas; mas sim as convulsões interiores e suas cicatrizes. Nenhuma plenitude espiritual, mas só equívocos, dúvidas, tremores. Não se trata de um Inocêncio X imóvel, em seu trono pontifício, congelado pela pompa e pela missão sagrada; mas sim de um papa fulminado pela vida, com os nervos expostos, empenhado em sobreviver, pego em flagrante no drama de ser.

O óleo de Francis Bacon empresta à realidade um caráter mais complexo e vivo que o oferecido pela escrita realista. Também o estudo de auto-retrato que Bacon pintou em 1964 se oferece aqui como referência. Nele, a imagem do pintor surge como um estremecimento. Viver é uma contorção — e é assim, retorcido e descentrado de si, que Bacon se vê, e se exibe.

O rosto do artista se desmancha em um cubo negro. Mãos e pernas se cruzam não em pose elegante, não em afetação, mas em estado de sofreguidão. Como se alguém, em vez de posar para uma fotografia, oferecesse ao fotógrafo um susto. O susto é o real — e não a imagem límpida (ainda que chocante, ou violenta, ou eletrizante) que as superstições dos realistas estampam.

Os estudos para retratos de Isabel Rawsthorne e Lucian Freud, amigos de Bacon, reafirmam sua disposição para o vivo. Há ali uma maneira de pintar (e, arrisco-me a pensar, de escrever), uma maneira de olhar o mundo, enfim, que ultrapassa a naturalidade das imagens. Algo que corresponde muito mais à grosseria e turbulência do mundo que a sua idealização. Ali está o que somos de pior, mas também de melhor. Não matéria fixa, mas matéria que dança, matéria em estado (e posição) de luta.

Na literatura, a idéia da luta se transforma em um precioso instrumento. Um confronto entre as narrativas dos realistas de hoje e as telas de Francis Bacon expõe a apatia de nossos escritores. A literatura só chega a ser literatura se desiste do estável — o que, no campo pessoal, significa também desistir das boas vendas, do sucesso rápido e dos aplausos de ocasião. O escritor avança (seja em que direção for, seja como desejar) quando se desapega das leituras lineares do mundo. Quando desiste de dominá-lo, e o abraça pelos nervos. É um abraço aflito, mas potente. Não é uma fusão: é uma deflagração.

Um mundo nervoso e excitado pede uma literatura que não se contente com a placidez das superfícies. Uma literatura que rasgue certezas e que faça desse rasgo uma estratégia para escrever. “Os modelos são feitos de carne e osso, e o que devemos captar é essa emanação”, Bacon disse um dia. “Devemos pintar até colher a energia que deles se desprende”. Idéia, a da emanação, que serve também aos escritores. Como um abraço de horror que, em meio ao susto, e sem esperar por isso, recebemos de alguém.

José Castello

É escritor e jornalista. Autor do romance Ribamar, entre outros livros.

Rascunho