Não perca de vista o músculo temporal posterior, me disse o professor Cronenberg enquanto, manipulando uma pinça dourada, rasgava a face da serpente. Nele se esboça o primeiro movimento com o qual os ofídios abrem a boca para engolir suas presas, o professor prosseguiu, sempre de costas. Comecei a espirrar, a respiração obstruída pelo ar condicionado do laboratório, de modo que não conseguia fixar a atenção naquele pequeno músculo. Passei também a lacrimejar, a fungar, a tremer e senti receio de que o mestre, insultado, me expulsasse da sala. Uma onda de saliva inunda o cadáver para fazê-lo mais escorregadio, Cronemberg continuou, e só assim pode ser engolido. E, ao dizer “saliva”, o mestre me fez sentir, por contraste, a secura que me infestava a boca, sintoma que Zilda, horas depois, classificou como um substituto do medo.
Na Sala das Víboras, ali, enquanto o professor Cronemberg se curvava sobre a mesa de necropsia e se torcia como um toureiro diante da vítima, eu percebi, pela primeira vez, graças à posição lateral dos focos de luz emparelhados com as janelas, que seus olhos tinham uma notável fixidez. Olhos duros, de hipnotizador, como aquele médico do Lins que consultei levado por meu pai, um inquieto e paciente pai, a arrastar um filho nervoso para a salvação mística. Olhos sem luz, de pedra, embora a voz soasse macia e, enquanto manipulava a pinça, ele fizesse uns movimentos circulares, bastante femininos, com os quadris. O cientista deve estar preparado para aceitar o ódio e a rejeição, Cronemberg prosseguiu, respondendo a uma pergunta que pensei em lhe fazer, mas que não fiz, o que provavelmente atestava seus dotes telepáticos. Eu ia perguntar, mas não perguntei, como afinal lidava com tantos inimigos, como mantinha as idéias em ordem entre tantos ataques. Mas recuei, temeroso de que ele me incluísse entre aqueles que se dedicavam a perturbá-lo. Ainda assim, não tive medo, embora Zilda afirme que esse foi o sentimento que me dominou e que, só por causa dele, eu esmurrei o professor, derrubando-o sobre os ladrilhos gelados, deixando-o estirado no meio do laboratório, com os olhos duros e abertos como ovos dispostos numa salada.
Uma cobra não possui nadadeiras, como um tubarão, o mestre continuou, mas ainda assim pode se movimentar em círculos, com a delicadeza das bailarinas, o professor Cronemberg não parou de falar enquanto rebolava dentro de seu jaleco engomado. Tinha bigodes rústicos, uma face marcada por veias grossas e músculos estufados de pugilista, de modo que os movimentos gentis contrastavam com sua figura viril. Tive vontade de rir, mas lembrei de Bonzalino, para quem o riso, às vezes, é uma manifestação da indiferença, e até do nojo, e tratei de me reprimir. Observei melhor e notei que meu mestre tinha a pálpebra inferior transparente, semelhante à dos ofídios, motivo das lendas tenebrosas que cercam seu olhar. Os óculos redondos, propositadamente pequenos, vinham disfarçar essa anomalia, sem, contudo, escondê-la. Sou um observador atento, gosto de miniaturas, aprecio o vôo das moscas (que considero mais sensual que o dos pássaros) e sempre me distraio com o instável jogo de desenhos formado pelas nuvens; sou um sujeito treinado para ver, até porque, depois de trabalhar vinte e dois anos como ourives, creio que afiei meu olhar, emprestando-lhe o corte das facas. Mas não tenho, jamais tive, aquelas pálpebras transparentes que via dependuradas na face do professor, nem o olhar gelado, de morto — e talvez por isso não tenha me causado repulsa que ele, ao cair, tivesse emitido um vagido.
Por isso notei também quando as mandíbulas de Cronemberg começaram a dilatar, como balões. Foi tudo muito suave, quase imperceptível; qualquer sujeito normal que estivesse a meu lado diria que nada se passava de excepcional. Mas sei que vi o que vi, e a prova disso é que tive que esmurrar Cronemberg antes que ele decidisse me engolir, imitando as serpentes que colecionava. Houve outra razão: entre os dois olhos duros, eu podia ver uma pequena fenda, muito sutil, da qual escorria uma nódoa de luz, fraca, mas constante. Cronemberg é autor de um ensaio sobre o terceiro olho das cobras, ou olho pineal, aquele que se abre ao exterior entre as parietais. Em seu estudo, “Os três olhos da serpente”, ele afirma que, ao contrário do que se costuma pensar, esse terceiro olho não guarda qualquer função agressiva, servindo, ao contrário, como um contrapeso ao sangue venenoso que escorre em seu ventrículo direito. “A serpente traz, no olho, a própria vacina”, lembro de ter sublinhado essa frase, e a repetido muitas vezes, enquanto Zilda massageava meus pés e lixava minhas unhas quebradas de joalheiro. Naquele momento, eu podia ver que Cronemberg, ele também, meu grande professor, trazia entre as sobrancelhas aquele terceiro olho; a luz que dele escorria, porém, era amarga e expelia um cheio próximo do chumbo. Interpretei aquilo como um sinal de que, depois de autopsiar a cobra, ele usaria a pinça para me atacar. Por isso, apenas por isso, eu o esmurrei. Que outro motivo haveria, se eu o admiro tanto e se devo tanto a ele?
Eu não tinha certeza se Cronemberg estava morto, ainda assim arrastei seu corpo para fora da Sala das Víboras e o instalei no sofá da recepção. O jaleco entreaberto, a barriga apontando para o teto, numa posição de displicência e até de indiferença. Os olhos continuavam duros, mas àquela hora, quase meia-noite, o instituto estava vazio e não havia testemunhas. Entrevi apenas a sombra de um segurança que, debruçado sobre uma mesinha, dormitava em seu posto. Pensei em largar o professor ali mesmo e simplesmente fugir, saltando de uma das janelas que dão para o pátio dos viveiros. Cogitei, em vez disso, em chamar a polícia e alegar um atentado. Muitas idéias me vieram, enroscadas e pegajosas, como serpentes, tanto que ali permaneci, de pé diante de Cronemberg, até que ele abriu os olhos. Os três olhos.
Ergueu-se, a cabeça ainda empapada em sangue, as mãos trêmulas, e caminhou em minha direção. Do terceiro olho, já não escorria luz, mas um negror. Foi o que fui capaz de ver, esse fio de escuridão, eu que, tomado pelo pânico, mal podia ver. Não sei o que você tentou fazer comigo, Cronemberg resmungou. Sua voz era estranha, desconhecida, o som parecia envolto em gazes e as vocais vinham macias, como almofadas. Saía de suas costas, provavelmente da altura dos rins, era a voz de um outro. Caminhou em minha direção, curvo e escorregadio, como se rastejasse. Então, para minha sorte, Zilda entrou para servir o café. Não sei o que fazia no instituto em plena madrugada, mas trajava seu uniforme negro, pontilhado com rendas nordestinas, e trazia na cabeça um capuz ridículo de arrumadeira. Não pareceu impressionada com o que viu, se é que viu. Mesmo conservando a postura ereta de governanta, pude notar o modo sedutor, voraz, com que inspecionou o terceiro olho de Cronemberg. Recusei o café e o professor, abanando as mãos, me imitou. Um pouco decepcionada, Zilda depositou a bandeja sobre uma prateleira e, com os braços abertos de nadadora, se aproximou do mestre. Beijou-o bem entre os dois olhos, ali onde estava o terceiro, aquela fenda escura, num beijo profundo, de mulher apaixonada. Quero que saiba que estou aqui para servi-lo, seja qual for a condição, sussurrou. Ainda fez uma reverência curta, de soldado, e saiu da sala. Tinha quadris duros, apesar das coxas roliças; estalava os saltos altos no mármore do chão, imitando as castanholas, o que acentuava sua postura sensual.
Ainda rastejando, o professor Cronemberg veio me abraçar. Recuei, enquanto pensava na resposta que iria dar à pergunta que me fizera. O que quis fazer? Nada. Foi só uma reação instintiva, justifiquei-me, só um reflexo. Ignorou meus argumentos. Abraçou-me com força e, com seus ganchos venenosos, me mordeu o pescoço. Desde então, aqui estou, congelado nesse tubo de ensaio, exposto entre as serpentes. Zilda vem todas as manhãs e, com seu espanador, limpa a redoma que me prende. Costuma se curvar um pouco para observar melhor, num ângulo mais favorável, certo ponto situado entre meus olhos. Sai sempre decepcionada com o que não consegue ver.