Caderno de notas (7)

O manifesto na internet contra o Rascunho, a revista Et Cetera e a guerra de Bush
01/04/2003

Recebo, por e-mail, um manifesto de repúdio à matéria de capa do Rascunho de março, a respeito do poeta Sebastião Uchoa Leite e de sua poesia. Foi-me enviado por um site (www.weblivros.com.br) e não traz uma assinatura pessoal do remetente, o que me pareceu estranho. Todos sabem, a web está infestada de documentos apócrifos, de falsificações e manipulações. Ao manifesto, vêm anexadas assinaturas de intelectuais ilustres e por quem tenho forte respeito intelectual. Silviano Santiago, Flora Süssekind, Sérgio Paulo Rouanet, Beatriz Resende, João Alexandre Barbosa, Luiz Rufatto, Heloísa Buarque de Holanda, Armando Freitas Filho, Jussara Salazar e Manuel da Costa Pinto, entre outros. Trato de considerar que, apesar da ausência da identidade do remetente, essas assinaturas são verdadeiras. Nomes que me levam a meditar a respeito da relevância do documento que me oferecem para assinar.

Tenho grande respeito pessoal por Sebastião Uchoa Leite, com quem só mantive contatos profissionais, mas sempre cercados de delicadeza e consideração mútua. Esse sentimento, é claro, não se alterou, nem haveria motivo para isso. Não sou, contudo, um leitor competente de sua poesia. Não li também o livro de Uchoa Leite que é objeto da resenha assinada por Rogério Pereira e Paulo Polzonoff Jr. Não escondo, afora exceções, que não sou um leitor apaixonado da poesia brasileira contemporânea, o que, por certo, a olhos mais desconfiados, me coloca numa posição suspeita. Em matéria de poesia, detenho-me em Cabral, Drummond, Vinicius, Bandeira, Schmidt, Cecília, poetas que não me canso de ler e reler. Provavelmente, é uma deficiência pessoal, mas, apesar de atuar como profissional do jornalismo literário, ainda sou daqueles que acreditam que a leitura não deve estar, nunca, desligada do prazer.

Não vou, portanto, entrar no mérito da discussão literária aberta pelo artigo de Rogério e Polzonoff. Outros, como o poeta Fabrício Carpinejar, de quem sou aliás um leitor entusiasmado, estão se encarregando disso. O que estranho, e realmente me incomoda, é o hábito de responder idéias com manifestos. Idéias se respondem com idéias, não com abaixo-assinados, ou movimentos de protesto. Mas esse hábito, o dos manifestos, em torno dos quais grupos de pressão se unem para desautorizar uma idéia ou posição intelectual, é muito comum entre nós. E não é de hoje. Creio que é um costume que só entrava, e dificulta, quando não censura, o debate intelectual. Outro hábito, igualmente freqüente e que sempre repudiei, é o de responder a críticas através do silêncio sepulcral — e, dessa forma, seus autores são ignorados e asfixiados intelectualmente. Hábito ainda mais grave é o de associar o silêncio à fofoca, aos comentários secretos e à maledicência praticada à boca pequena, essa sim, quase sempre, calcada em preconceitos pessoais. Todos eles são, a meu ver, instrumentos de negação do debate, e inimigos do livre exercício do pensamento.

Vivemos o momento de uma guerra brutal, injusta, ilegal, que pode trazer conseqüências gravíssimas para a humanidade. No entanto, intelectuais vêm emprestar suas assinaturas para atacar outros intelectuais, atirando, assim, nos próprios pés. Acho isso um grande erro, e um erro muito perigoso, até porque tais manifestos costumam vir guarnecidos com a assinatura de oportunistas, que ali aparecem, quem sabe, na esperança sórdida de ombrear com os nomes ilustres.

Posso, é claro, estar enganado em meus argumentos. Mas, pelo respeito que sempre tive e continuo a ter pelos intelectuais que citei, e, sobretudo, pela consideração que merece o poeta Sebastião Uchoa Leite e tudo o que lhe diz respeito, e mais ainda por meu apego à liberdade de pensamento, não poderia deixar de manifestá-los publicamente.

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A revista literária Et Cetera, do editor curitibano Fábio Campana, cujo número zero ainda circula, traz uma assinatura pessoal e inconfundível: a da poeta e artista plástica Jussara Salazar. Ela é a responsável não só pela produção editorial, mas também pelo projeto gráfico, com a assessoria de Cláudio Daniel e Rubens Campana. O resultado vem não só perturbar, mas, sobretudo, interrogar aqueles que trabalham com publicações dedicadas à literatura e à arte no Brasil. A referência mais importante do jornalismo literário paranaense até aqui, a revista Joaquim, apesar da qualidade indiscutível no conteúdo, era conservadora e receosa na forma. Mas não estou falando apenas do passado. Nos últimos anos, a mesma inibição se repete, por exemplo, numa revista como a Cult, de São Paulo, publicação de resto estupenda, criada pelo escritor Manuel da Costa Pinto, mas convencional e mesmo comercial em sua aparência. Há uma tradição silenciosa que diz que as revistas literárias devem ser austeras e graves, ou subversivas e experimentais, porque assim estaria dividida a literatura, entre os tradicionalistas de cachimbo e os vanguardistas com seus óculos da moda. Ao conceber Et Cetera, Jussara Salazar desconsiderou essa tradição viciada — e não só a desprezou, como tratou de manipulá-la criativamente, jogando com as convenções que a consagraram.

Foi preciso que uma artista plástica e poeta, uma pernambucana deslocada no ambiente curitibano, viesse a editar Et Cetera para que essa tendência dupla se rompesse. Jussara Salazar não se contentou em fazer uma revista “bem-feita”; tampouco caiu no engano esteticista de considerá-la apenas um objeto inerte. Em vez disso, tratou de manejar criativamente e mesmo de adulterar as convenções da imprensa literária, de modo que, colocando-as em crise, abriu espaço para uma reflexão que agora envolve o leitor e que se renova a cada página. Na edição de poemas, como os Dry Rust, de Moacir Amâncio, o ensaio fotográfico de Vicente de Melo rivaliza e se equipara aos versos, abrindo uma luta com eles. A fábula de Wilson Bueno, O macaco cantor, toma a forma de um almanaque infantil, ou de um livro de fadas, paródia a envolver e questionar a própria paródia. A leveza na edição da entrevista com o escritor Jamil Snege contrasta com a tradição de compactar e empacotar — e solenizar — a voz dos entrevistados. A delicadeza (marca, aliás, da artista plástica Jussara Salazar), com todo o espectro de possibilidades e sensações que ela desencadeia, substitui o veio austero, ou feroz, que predomina nessas revistas.

Foi com essa estratégia sutil, quebrando as resistências e os costumes por dentro, questionando ponto a ponto vícios e convenções, sem, contudo, partir para a pura agressividade, que Jussara construiu uma revista exemplar, que vem elevar os padrões de qualidade do mercado literário brasileiro. A marca de sua assinatura não está só no elegante projeto gráfico, coisa da artista plástica sensível, mas se estende também e sobretudo à teoria da edição, e aqui aparece o dedo da poeta. Na verdade, em Et Cetera a edição de texto e a edição gráfica caminham numa só direção, palavra e imagem em constante diálogo, sem que uma delas chegue a predominar. Nem desenhos que ilustram textos, nem textos que decoram, ou preenchem, um projeto visual. Em vez disso, o equilíbrio combativo entre ambos. Tendência pluralista, e antiautoritária, fazendo valer, no concreto, a idéia de uma revista em que literatura e arte se ombreiam.

Basta folhear Et Cetera para entender que, em nenhum momento, Jussara deixou-se vencer pelo impulso de criar um projeto fechado, impondo à revista um padrão — ainda que a noção de equilíbrio jamais se perca. E é nessa aparente ausência de assinatura que ela deixa, de fato, uma assinatura. Para cada texto, pode-se dizer, há um projeto editorial distinto, um jogo de imagens particular, um olhar exclusivo. A cada página virada, Et Cetera é uma revista diferente, é uma outra revista. Agindo assim, Jussara praticou uma edição regida pela norma sem norma do interesse pelo particular. Texto e forma gráfica tomam, a cada vez, uma nova direção, de modo que a revista guarda muitas surpresas, como se existissem várias revistas dentro de uma só. Em conseqüência, não há uma concepção editorial a asfixiar o texto literário, como uma camisa-de-força — como acontece nas revistas das vanguardas. Nem, tampouco, uma ditadura do texto, a vigorar supremo e senhorial, como ocorre nas revistas tradicionalistas. Assim como Bravo!, de São Paulo, se tornou a grande referência entre as revistas culturais do país, Et Cetera vem ocupar um lugar central entre as revistas de literatura e arte. Lugar de inquietação, mas também de delicadeza e de celebração das potencialidades da escrita.

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Nenhuma outra imagem se tornou, até aqui, tão emblemática da invasão do Iraque pela coligação anglo-americana quanto aquela, captada ao vivo pela BBC e pela RTP, do presidente Bush, sob a tutela de sua cabeleireira, repassando o discurso que faria minutos depois e se preparando, assim, para anunciar o primeiro ataque. “Retocando a maquiagem, antes de detonar os canhões”, como disse, numa descrição brutal, a poeta Adélia Prado. Ou, como completou outro escritor corajoso, o pernambucano Raimundo Carrero: “Bush, se embelezando diante do espelho, dizendo: — Sou belo e sei matar”. Por contraste, a imagem de Bush se vestindo para matar, como em algum filme macabro de Brian de Palma, seu treino em voz alta, seus muxoxos e caretas em um sinistro teatro, me evocam uma cena que eu trazia perdida na memória.

Certa vez, há muitos anos, durante uma entrevista feita nos camarins de um teatro, eu assisti a atriz Henriette Morineau maquiar-se diante de seu espelho, desconfortável e solitária, preparando-se para uma representação de Shakespeare. Foi uma cena banal, mas fascinante, a dignidade com que Morineau retocava suas rugas, sem pretender escondê-las, ao contrário, sublinhando-as, em busca de traços que realçassem sua velhice e fraqueza. Lembro-me que, de repente, comentou: “Não sei por que me maquio”, e a dúvida exprimia o sentimento de sinceridade e de despojamento com que ela subia ao palco. Era um camarim só seu e, ao contrário dos milhões que presenciaram o presidente Bush se pentear, eu lhe servia de testemunha solitária. Logo depois, Madame Morineau, como a chamavam, subiria ao palco para anunciar não a morte, mas a vida. No entanto, seu semblante era grave, a gravidade de quem se oferece como porta-voz de palavras nobres (no caso, de William Shakespeare). Uma maquiagem rápida, ela retocou os cabelos com um pente de plástico, barato e torto, e com um lenço de papel apagou os excessos da pintura; não ensaiou nenhum “ar shakespeareano”, nem repassou o texto, ou exercitou alguma impostação dramática. Não precisou de uma maquiadora, ou cabeleireira: fez tudo sozinha, de forma intensamente íntima, como se estivesse se preparando para dormir.

Quando vieram chamá-la para o espetáculo, e antes de se despedir, olhou-se mais uma vez no espelho, como se estivesse se despedindo de si mesma. Em seguida, para completar essa sensação, me fez um pedido: que eu me instalasse na platéia e a vigiasse de perto porque, assegurava, durante algumas representações sentia-se possuída por seu personagem, numa experiência autônoma que se avizinhava do transe mediúnico. “Há momentos em que quem está em cena já não sou eu”, confessou-me, aflita. “E eu preciso saber quem é essa pessoa que toma meu lugar”. Compromissos pessoais me impediram de ficar para o espetáculo. Ainda hoje, contudo, me pergunto a que tipo de possessão Morineau se referia, o que exatamente quis me dizer. Tomando o presidente Bush como elemento de contraste, preso ali à sua armadura de homem poderoso e pronto para matar, só posso pensar que o que ela desejava exprimir fosse não uma captura, ou uma sujeição, mas um tipo agudo de libertação.

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Esbarro com uns versos do poeta francês Antonin Artaud que vêm iluminar o horrendo noticiário da guerra a que, compulsivamente, e inapelavelmente, assistimos na televisão: “Não há nada que eu abomine/ e execre tanto como essa idéia de espetáculo/ de representação/ portanto de virtualidade, de não realidade”. Artaud dizia escrever “para analfabetos”. Ninguém precisa estar pronto para ler Artaud; ao contrário, qualquer idéia de “momento adequado”, de “leitura correta”, de “clareza” vem apenas perturbar o sorver livre das palavras. Van Gogh, em que Artaud se espelhava e a respeito de quem escreveu, também afirmou que pintava “para os simples de espírito”, e não para os especialistas. Via-se como “um pobre ignorante concentrado em não se enganar”. Ambos realçavam a força dos elementos primitivos, do trato direto e sem mediações do real.

Artaud criticava Leonardo Da Vinci que, para ele, só pintou “cadáveres”, pois não podia se livrar das leis imóveis da anatomia. Já em Van Gogh, ele diz, o corpo é desequilíbrio e instabilidade — matéria viva, nunca fixável, e sempre em estado de convulsão. Há, na atitude de Artaud e de Van Gogh, uma espécie de humildade fundamental, ou essencial. Posição de dúvida, de sensibilidade aberta, de compaixão também, que, por contraste, falta no ritmo frenético das imagens veiculadas pela TV. O noticiário da guerra nos esgota, por sua brutalidade, mas também nos desilude e frustra, pelo predomínio mortal da repetição. Os mesmos enquadramentos, a mesma luta de informações e de versões, os mesmos olhares a bater como martelos. Como Van Gogh pintaria essa guerra? Como Antonin Artaud a escreveria? O corpo da TV é síntese, edição, convenção. Ao contrário, o corpo para Van Gogh era pura convulsão. Frustrado com a eterna e impagável dívida que a escrita tem para com a realidade, Artaud chegou afirmar que “falhou em escrever”. Todos falhamos. O que importa é saber o que fazemos desse fracasso.

José Castello

É escritor e jornalista. Autor do romance Ribamar, entre outros livros.

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