Caderno de Notas (6)

Com paciência e muita sensibilidade, o artista plástico e escritor Carlos Dala Stella nos ensina muito a respeito da arte e da escrita
Carlos Dala Stella, autor de “Bicicletas de Montreal”
01/03/2003

Folheio as Bicicletas de Montreal, livro do artista plástico, fotógrafo e escritor Carlos Dala Stella. As bicicletas, em si, são bastante parecidas, variando apenas o estado de conservação, o ambiente em que estão estacionadas e o grau de mutilação que vieram a sofrer. Aparecem em fotos coloridas, ou em preto e branco. Ou desenhadas, ou ainda pintadas, em papéis como o canson, o arroz, o carbono e o seda, com o uso de uma variedade grande de instrumentos, lápis de vários tipos, estiletes, corretores escolares, pincéis. O resultado vai desde a representação mais figurativa à quase abstração, variedade não só técnica, mas de estilo, que corresponde ao olhar fragmentado e dançarino de Carlos.

Contudo, ele fotografou e desenhou não apenas bicicletas, deixadas pelas ruas da capital do Canadá francês. Carlos fotografou e desenhou a arte — e é isso o que me interessa aqui.         No posfácio do livro, o artista explica que essas bicicletas, muitas delas abandonadas, ou esquecidas, cruzavam seu caminho diário de casa para o ateliê, e de volta para casa. Ali estavam as bicicletas, fora de uso, sem vida, objetos desprovidos de significado, expostos não para a lembrança, mas para o esquecimento. Objetos destinados a não serem vistos. Mas Carlos Dala Stella não se cansou de observá-las, “nem sempre com o intuito deliberado de fotografar”, admite. Observava “sem desejo e sem memória”, como recomendam os psicanalistas, e só assim conseguia ver. A presença das bicicletas o fisgava, se impunha a ele, surgindo diante de si de modo circunstancial e aleatório, e verdadeiramente inútil, sem nenhuma função, ou razão.

“Alguém disse que são meus nus”, ele observa. E parecem ser mesmo. O modo como Carlos flagrou suas bicicletas (melhor dizer: como as “fez”) guarda esse elemento de inesperado e de susto, como alguém que, passando diante de uma janela, vê, por acaso e sem ter procurado por isso, uma pessoa que se despe. A imagem se faz de um golpe, e no mesmo golpe — pelo pudor, pela educação, pelo gesto impensado, pelo reflexo — a imagem se desfaz e se evapora.

Não eram tanto as bicicletas: “O que me atraía era a trama de linhas metálicas e vegetais, indistintas”. Quer dizer, o esqueleto, despojos de selim, guidon, pedais, ferro retorcido, entulho. A carcaça, o resto. Objetos mortos, fora da linha da utilidade, desprovidos de função. Que se limitavam a estar, a ocupar trechos do caminho, sem valor ou significação. “O que me encantava era a grafia plena de irregularidades”, ele admite. Não o uso, nem a eficácia, mas a quebra, o desvio, o defeito. A ausência de forma como a melhor forma.

Sem ter decidido isso, sem projetá-lo, Carlos Dala Stella andava por Montreal e, com esse vagabundear, fez seu livro. As fotos, os desenhos, as visões foram se fazendo dentro dele; não eram cobiçadas, ou buscadas, simplesmente lhe vinham. O resultado, o livro Bicicletas de Montreal, é fruto dessa conexão desinteressada que se estabeleceu entre o artista e o mundo. É um fio, um quase-nada, que os ligou. Quase-nada, esmaecido e inútil, que define a arte.

Mas, vendo as bicicletas de Carlos, pensei, em particular, na literatura. Primeiro, porque Carlos Dala Stella também é escritor — embora tenha uma relação menos freqüente com a escrita, o que não significa dizer menos intensa, atributo que se comprova em seu posfácio. Depois, e isso foi mais forte, porque, ao tropeçar em peças soltas, pedaços, restos, era por sobre a língua, eu pensei, (como alguém que se deixa absorver por pensamentos soltos, ou mesmo que folheia sem pensar as páginas de um dicionário) que Carlos circulava.

Sem escrever, sua postura era a do escritor, do sujeito que permite o vazamento entre seu Eu e o mundo, que se deixa embriagar pelo que não pode entender e até pelo que despreza e o incomoda para, só depois, ordenar e se permitir o momento de pensar e agir. Carlos Dala Stella é um grande artista, seus desenhos e fotografia bastam como prova. Contudo, sua obsessão pelas bicicletas me soa como uma metáfora, quase perfeita, da relação do escritor com a palavra. Sem escrever uma só palavra (já que o posfácio é mais uma peça confessional e complementar), Carlos fala da literatura. E, o incrível, não precisa de palavras para isso.

Também o escritor trabalha com idéias que lhe vêm incompletas, aos pedaços, indecifráveis. Quase mudas. Idéias de aparência fixa e desgastada (congeladas, como algumas das bicicletas que Carlos fotografou, ou pintou), mas isso é só a casca, é tudo o que se pode ver sem, contudo, configurar um todo. Se olharmos atentamente para as bicicletas, se nos entregarmos ao prazer que essas imagens e desenhos evocam, será uma enxurrada de histórias, de suposições e conjeturas, que se arrastará logo atrás. As fotografias de Carlos guardam essa qualidade: como são incompletas e fragmentárias, elas não nos contentam com o que mostram, e nem se bastam; ao contrário, nos enchem de perguntas, de hipóteses, de suposições. Completam-se dentro de seu observador, de modo que, para cada um, elas são uma coisa diferente.

Três bicicletas cobertas de gelo encostadas numa grade do Hôtel-de-Ville. Parecem estar ali há muito tempo, esquecidas, mas uma nevasca pode ter acabado de cair, horas antes, e talvez elas só tenham chegado àquelas grades naquele mesmo dia. Uma bicicleta coberta pelas folhagens nos fundos do Ex-Centris, uma outra estacionada na rua Clark: a natureza devorando o artefato humano, sugando-o para seu mundo primitivo e sem significado. É mais provável ainda, é quase certo, que elas ali estejam, naquela posição morta, há muito, e as folhas as foram recobrindo, com seu manto verde e sua lentidão. Mas foram deixadas ali de propósito (como recordação, como decoração, como provocação), ou simplesmente esquecidas, largadas ao que der e vier?

O der e vier que é condição fundamental da atividade do escritor. Aceitar, eis o mais difícil. Bicicletas vazias, sem dono, inúteis, evocam os homens que as possuíram, ou possuem, e que nelas se locomoveram, ou se locomovem. Apanhadas de repente, num flagrante não planejado, conforme a vista de Carlos sobre elas se fixava, pontuando suas andanças, na medida em que ia se derramando sobre esse ou aquele lugar. Esqueletos de bicicletas, que metaforizam os esqueletos da literatura, esses pedaços, dejetos, frases incompletas, que constituem a base do escrever. Não só da literatura, vale dizer, mas também do pintor, do músico, do fotógrafo, do artista. A matéria bruta de quem se dispõe a criar e aceita o risco inerente a essa disposição.

Na rua Duluth, Carlos fisga o que é um pedaço de esqueleto — e num desenho preciso, ele logo a complementa na página ao lado. Ele diz: “Durante nove meses me alimentei da fugacidade desses instantes, quase envergonhado de encontrar alegria em ração tão rala”. Vergonha? Talvez ela seja um sentimento fundamental do artista, do escritor, e com ele viria aliada a culpa — culpa cristã e milenar, por roubar da realidade tantas migalhas, apropriando-se daquilo que os outros menosprezam, que lhes parece desnecessário, ou secundário, e, o mais grave, desse resto fazendo seu pão.

“Ração tão rala”, diz Carlos, mas justamente porque rala, ela pode servir como alimento. Inventário de materiais, sobras brutas, as fotografias de Carlos Dala Stella se assemelham (ou constituem) a visita a um ateliê. Ele diz: “No caminho entre o ateliê e a casa”. Mas o ateliê era ali mesmo, nesse trajeto do artista andarilho. (E aqui me ocorre Timbuktu, o desprezado, mas magnífico romance do nova-iorquino Paul Auster). Carlos elevou a miudeza e o desprezível ao status de riqueza. Em Bicicletas de Montreal estão expostas suas perguntas mais secretas: a exposição também é dele. Sobre as bicicletas, através das bicicletas, ele é um artista que se desnuda.

De fato, essas fotos são os seus nus: sem adornos, sem decoração, sem nome, sem elaboração. A coisa tal qual ele a viu, a coisa tal qual é — a realidade despida de seus ornamentos e de seus ideais. Se é que isso é possível, ou na medida em que isso talvez seja possível. Esboço — porém, a própria vida não passa de um esboço. Rascunho, como este jornal que o leitor tem agora mesmo nas mãos.

Assim, conforme folheio o livro, vou e volto entre as bicicletas de Montreal, e já não posso me deter; pois uma fotografia parece pedir a outra, e a outra, de modo que a vontade de retornar sempre me pressiona, e por isso não me canso. O livro de Carlos tem a estrutura de uma divagação: ele anda sem rumo, pensa sem rumo, e subtrai dessa flutuação inútil a riqueza das fotografias e desenhos. Fotografa em estado de leveza e meditação: “Quando não suportava mais a solidão e a necessidade de trabalhar, eu saía para a rua e caminhava na neve, sem direção, até sentir as orelhas e os pés congelarem”. Talvez fosse preciso esse desconforto, essa dor nas extremidades para que, necessitado de se agarrar ao que não tinha, e com isso se consolar um pouco, Carlos Dala Stella, enfim “visse” as bicicletas. E, no entanto, elas estavam todo o tempo ali.

A arte como consolo. Mas quantos artistas, quantos escritores podem dispor, hoje, desse tempo em suspenso para vagar pelas cidades, desviar-se dos hábitos e até desvairar, entrando enfim naquele estado de desleixo, de afrouxamento mental, um hiato nas regras da realidade (ainda que fortemente atado à realidade, só que com outro tipo de nós), que permite a criação? Quantos artistas podem conter a aflição e, assim, se aliviar? A utilidade da arte: um quase-nada ela também, e apesar disso, uma grande diferença.

Sim, porque a realidade não é só aquilo que se vê, ou o que se pensa a respeito dela, ou aquilo que se pode verificar, medir e contabilizar. Ela é também enigma, partes dispersas e desprovidas da noção do todo, nacos brutos que só se deixam fisgar pelo desvio e pela desatenção. Ao andar por Montreal, Carlos estava visivelmente desatento, sendo que essa desatenção, e falta de concentração, contrariando todos os padrões modernos e “normais”, é que o levavam até as bicicletas, que o permitiam vê-las. Foi preciso o desconsolo, foi preciso a solidão, para que aquelas bicicletas velhas e mudas, enfim, viessem lhe dizer alguma coisa.

Quando você desceu hoje pela rua em que mora, quantos e quais carros viu estacionados diante da portaria? Por quantas pessoas passou até tomar seu próprio carro, ou táxi, ou metrô? O que havia de novo no caminho? São perguntas que, em geral, não sabemos responder, porque estamos com a atenção voltada para coisas mais palpáveis: os compromissos na agenda, a hora certa, a direção do trajeto, as pedras em que não podemos tropeçar, ou as pessoas que nos esperam.

Contudo, foi no desvio, e na inutilidade, num caminho que não leva a parte alguma — caminho, portanto, de filósofo —, que Carlos Dala Stella encontrou suas bicicletas e, com elas, não só uma outra Montreal, distante daquela que aparece nos postais do Canadá francês, mas também bicicletas distintas das bicicletas que conhecemos, sempre lustradas, aprumadas, deslizando pelo asfalto ou posando em vitrines, equilibradas por indivíduos saudáveis e sensatos, ou por cavaletes, manequins e tabelas de preços.

Função da arte, função da literatura: inverter os valores e ater-se ao desprezível. Por isso os grandes escritores são inconfundíveis: cada um deles circula em sua faixa de atenção, em sua zona de sintonia, e só assim exercita o que tem de pessoal. As bicicletas que Carlos viu, ninguém viu — só nós agora, seus leitores, pelos olhos de Carlos temos a oportunidade de ver. Com elas recebemos, no contra-pé, uma visão particular de mundo, lenta e dispersa com são as miragens humanas. Em vez das paisagens fechadas e claras, a grandeza do detalhe e da dispersão.

Partindo do quase-nada, Carlos Dala Stella não só fez um livro sensível e belo, mas nos ensinou alguma coisa a respeito da arte e da escrita. Teve as qualidades que formam o artista e o escritor: a paciência para esperar, sem saber o que se espera; a liberdade interior; a coragem para suportar o susto quando a coisa chega. Clarice Lispector, meio freudiana, dizia: o “isso”. Carlos não quis impor seu estilo, ou estabelecer significados. Limitou-se a aceitar aquilo que lhe vinha, sem nada pedir em troca, sem impor condições ou discriminar respostas, e foi por isso, só por isso, que fez um livro estupendo.

Bicicletas de Montreal
Carlos Dala Stella
Imprensa Oficial do Paraná
107 págs.
José Castello

É escritor e jornalista. Autor do romance Ribamar, entre outros livros.

Rascunho