Caderno de notas (11)

O caminho dos escritores é feito de escombros, balizas envergadas e destroços
O argentino Julio Cortázar, autor de “Os prêmios”
01/09/2003

O século 20 se encarregou de fracionar e desfigurar os gêneros literários. Ficcionistas como Kafka, Virginia Woolf, Borges, Joyce, Proust, Beckett, e poetas como Pessoa, estilhaçaram aquelas certezas frágeis que, vacilantes, perduraram ao longo do século 19. Até a fronteira mais sólida que separava os dois grandes gêneros, prosa e poesia, foi rompida. Hoje, já não podemos falar, com a mesma segurança, da tipologia do romance, já que os limites entre o romance histórico, o autobiográfico, o picaresco, o de formação, entre outros, é cada vez mais flácido. O século 21 se abre para a literatura com uma paisagem em ruínas: escombros, balizas envergadas, destroços, um deserto a partir do qual, hoje, são obrigados a partir todos aqueles que desejam escrever.

Há os que, ainda iludidos pelas convicções do passado, esforçam-se em retomar os gêneros que precederam a grande explosão modernista, como se fosse possível anular a passagem do tempo. Podem produzir, às vezes, obras de qualidade, mas a verdade é que desistiram de enfrentar o presente que lhes cabe viver. Os escritores têm nas mãos, agora, padrões desfigurados, mutilados, corrompidos; parâmetros recobertos de fendas, de cicatrizes, que entraram num declínio inexorável. Alguns críticos, mais desesperados, puseram-se a reconstruir cânones literários, na esperança de, assim, ter uma muleta em que se amparar. Estão costurando, apenas, suas próprias camisas-de-força.

Algo se passou não só no mundo interno da literatura, mas em sua face mais exterior, em seu laço com o real. Desde a revolução modernista, a relação entre a literatura e a realidade já não é mais a mesma. Antes, havia os livros de um lado, o real de outro. Eles podiam até se conectar (como nos “romances de não ficção” de um Truman Capote, fórmula entre nós seguida por um João Antônio); mas, ao fim, tanto a literatura quanto a realidade continuavam intactas. Desde então, como diz o escritor argentino Ricardo Piglia, o escritor se tornou um sujeito que vacila todo o tempo entre a realidade e a fantasia, sem jamais se decidir por nenhum dos dois. Concluído o modernismo, essa indecisão se tornou o fundamento de qualquer projeto literário. As fronteiras entre os gêneros estão rachadas e, em vez de cicatrizá-las ou fechá-las com próteses, como fazem alguns escritores mais crédulos, o caminho que se abre, em vez disso, é o do contágio, o da contaminação. O corpo da literatura perdeu o controle de suas fronteiras — como uma pele que se rasga — e entrou em estado de infecção.

Infectados uns pelos outros, os gêneros se abrem como mirantes, em vez de se fecharem como abrigos. Ninguém pode mais escrever um romance policial, uma biografia, um romance de aventuras ingenuamente. Há um sistema de vazamentos, mas também de irrigação, a interligar os vários gêneros, movimento circulatório que, em conseqüência, leva o escritor a duvidar até mesmo de sua identidade de escritor. A pergunta inicial, hoje, já não é nem mesmo o que é a literatura, como se perguntaram os grandes escritores do século 20. Mas, sim, o que é um escritor. Ou, parodiando o que Freud disse a respeito das mulheres, a pergunta seria: o que quer, ou o que ainda pode querer, um escritor?

Também entre nós, ao longo do século 20, movimentos estéticos e escritores pulverizaram os contornos literários. Na prosa brasileira, Rosa esgarçou a ficção para fora, deixando-a exposta à fala do grande sertão e às nuances de seu próprio ouvido, deformando-a, expandindo sua potência para além do “bem escrito”. Clarice, ao contrário, a esgarçou para dentro, levando a ficção aos limites do intolerável, lugar no qual se passa a suspeitar da linguagem e as palavras se tornam pura dinamite. Nas mãos de Rosa, a ficção se aproximou da arqueologia e da lingüística; nas de Clarice, da poesia e da filosofia. Depois deles, já não pode mais ser a mesma. Perdeu toda a sua pureza, se é que um dia tal qualidade de fato existiu.

Nossos cinco grandes poetas no século — Cabral, Drummond, Bandeira, Vinicius e Cecília — parecem também ter esgotado o vigor expressivo do poema. Elevaram a poesia a patamares tão altos que asfixiaram as gerações seguintes. Atitude que deu lugar a um período (o qual ainda vivemos) de desertificação; mas agora é com esse deserto que os poetas devem, também eles, recomeçar. Os formalistas, organizados em grupos de ataque e munidos de suas construções e seus manifestos, se esforçaram para, agindo como dentistas, obturar o vazio com novas palavras de ordem. Só conseguiram esculpir uma máscara oca que, em vez de preenchê-lo, veio realçá-lo.

Entre nós, hoje, o fracasso dos gêneros se expressa, de maneira muito particular, na proliferação da crônica — o lugar, por excelência, da ausência de gênero. Na crônica tudo é possível, da ficção clássica à moda de Clarice às interrogações existenciais de um Carlinhos de Oliveira, do lirismo despudorado de Rubem Braga à filosofia disfarçada em desafogo de um Paulo Mendes Campos. Depois deles, a crônica brasileira se tornou o lugar da experimentação — e é tão mais ou menos bem sucedida quanto não foge a esse destino. Às vezes abriga apenas o texto jornalístico; outras vezes, a confissão mais sincera, ou a simples memória que, na verdade, não é tão simples assim. A crônica passou a sintetizar um impasse — e não parece ser por outra razão que, na última década, multiplicando-se nas páginas da imprensa, ela renasceu.

A crônica se tornou o lugar da experiência, um laboratório; o espaço sem forma, para o qual os velhos gêneros confluem, já sôfregos, já deformados por um século inteiro de agonia e de suspeitas. Um dos mais importantes ensaios literários do século 20, A era da suspeita, da romancista francesa Nathalie Sarraute, sintetiza, em um punhado acanhado de páginas, esse sentimento. No século 20, já não era mais possível escrever como Balzac, ou como Flaubert. Já não era mais possível crer nas aparências, ou na imaginação, e nem mesmo crer singelamente no escritor. Em vez de servir de suporte, a trama passou a ser vista como uma venda a tapar os olhos do leitor. Perdeu-se o chão — e entramos num estado pastoso, de dúvida e flutuação. O chamado “método objetivo” fracassava; o leitor passou a ocupar, na narrativa, um lugar que antes era destinado exclusivamente ao escritor — bastando pensar em livros como O jogo de amarelinha, ou 62 Modelo para armar, ambos de Julio Cortázar. As fronteiras estavam rasgadas e os papéis embaralhados para sempre.

Diante de uma realidade ainda mais complexa, e pisando um terreno minado, ao escritor hoje restam duas posturas: ou o cinismo (voltar-se para trás, como se nada tivesse ocorrido); ou o risco. Perigo de se contaminar, seja pelo real que já não fica mais quieto como um cão adestrado; seja pelo aluvião de perguntas que a escrita agora arrasta atrás de si. A solução não é também continuar a demolir, como os formalistas insistem em fazer — já que quase nada resta a ser demolido, a não ser um punhado de cascas vazias que só se sustentam pelo vício, pela apatia, ou pelas leis oportunistas do mercado. Com sua volúpia pela rapidez e pela eficiência, o mercado tapa, como pode, e às custas da própria literatura, o grande rombo modernista. Encobre-o, mas não o resolve.

O mercado, agora, pressiona a literatura e os escritores, deles exige funcionalidade, senso prático, clareza de propósitos — tudo aquilo, enfim, que à arte não interessa. Aos escritores sérios resta escrever contra o mercado, não para ser “do contra”, mas porque a ele, no geral, só interessa o previsível. Mas já não é possível também escrever como os vanguardistas — o mundo não está mais traçado em preto-e-branco, e os manifestos se tornaram pregações emboloradas. Entre os destroços, se destacam aqueles escritores que, às cegas, ignoram tanto as pressões de venda, como os antigos cânones ressuscitados e, aferrando-se a sua solidão, insistem em perseguir um caminho particular. Vingam aqueles que têm uma voz pessoal — basta pensar em Saramago, em Clarice, em Rosa —, cuja escrita não pode ser reduzida, nem manipulada, não precisa ser adjetivada, ou classificada, pois apenas é. Vingam aqueles que fazem da literatura um espaço de luta e desafio, mas que já não se deixam iludir, também, pelas miragens da novidade.

Por isso é inútil, além de desastroso, que a crítica se preocupe em traçar classificações, ditar cânones, ou balizar o que já não tem limites. A arte é, por definição, a esfera do pessoal, do insubstituível e esta é, depois do turbilhão modernista, a única certeza que fica. É o lugar do susto e do desregramento. Ao construir novos cânones, a crítica pensa que, com isso, está reordenando o grande caos, impondo a ordem ali onde há apenas desordem. Quando, ao contrário, depois dos estragos produzidos pelo século 20, o que se pede é perspectivas não alinhadas a padrões, dispostas, ao contrário, a assombrar.

Os escritores enfrentam uma era de perplexidade — estado que deve ser enfrentado não com muletas, ou o apego a velhos expedientes de classificação e de salvação. Mas, ao contrário, com uma afeição à própria perplexidade, com tudo o que ela contém de espanto, mas também de hesitação, de admiração mas também de indecisão, de impreciso mas também de promissor. É a vacilação de que fala Piglia, estado fronteiriço em que os escritos se escrevem não para confirmar expectativas, ou corresponder a fórmulas consagradas, ou para convencer a crítica de sua originalidade. Mas, ao contrário, para se dissolverem no imprevisível. Já não é mais a atitude das vanguardas, a de agir para chocar, para contestar, para se opor; até porque, agora, pouco existe a que se possa se opor; toda atitude de contestação se torna, ela também, só um trejeito vazio.

No caminho que se abre, pode haver, e há, muita inconstância, incerteza e, até, cegueira. Não há mais, contudo, outra maneira de escrever. O escritor deve prosseguir, sem saber já o que deseja encontrar, ou o que poderá construir. Só lhe resta essa atitude, do sujeito que, retido num ambiente às escuras, ainda assim se expõe, se deixa contaminar e, ao mesmo tempo, interfere e reage — ainda que nunca venha a estar muito certo a respeito do que realmente está fazendo. Dessa postura, contra todas as regras exigidas pelo mercado, contra o pessimismo imposto pela eclosão das linguagens virtuais, e contra as forças que pretendem se refugiar na volta ao passado, a literatura, venha ela a ser o que vier a ser, poderá, quem sabe, perdurar.

José Castello

É escritor e jornalista. Autor do romance Ribamar, entre outros livros.

Rascunho