Martinho Arp decidiu estabelecer a supremacia da indiferença em sua vida, o que não foi uma decisão fácil para um homem sensível que, desde jovem, trabalhava como adestrador de cães. Animais não compreendem decisões voluntárias, nem têm acesso à esfera da vontade, muito menos à da insensibilidade; reagem por instinto, e brutalmente, e nada mais distante da indiferença que eles. Martinho prometeu a si mesmo que, logo que pudesse, largaria os cachorros e buscaria uma ocupação mais impessoal, como a de contador, ou de gerente de banco. Contudo, num golpe do acaso, herdou de um tio distante um açougue em Bomberg e, da noite para o dia, tornou-se um açougueiro de razoável reputação.
Eis Martinho Arp com seu facão em punho, a separar maminhas e filés, a destrinchar músculos, a picar carnes de segunda e miúdos para estrogonofe. Tem uma aparência serena, se tomarmos em conta apenas isso, a aparência, aquilo que dele se vê. Se as feições são plácidas, o que elas recobrem ferve. Enquanto escolhe suas carnes e atende a freguesia, quase sem se dar conta, Martinho traça mentalmente uma teoria sangrenta do mundo, baseada nos fatiados e nas combinações que serve aos compradores. Tenta se convencer de que está bem, mas as unhas cravadas no mármore, o sorriso sádico que lhe escapa dos lábios, os saltinhos aflitos que dá atrás do balcão, tudo aquilo, aquelas miudezas (como os miúdos que empacota), vão indicando que, se está mesmo bem, não é porque tenha conquistado a indiferença salvadora, mas porque, ao contrário, se tornou um monstro. E a monstruosidade, no seu caso, não é uma anomalia, nem lhe confere um aspecto ameaçador, mas vem, unicamente, das coisas que pensa.
Nesse ponto, é preciso ser mais específico. Em que pensa Martinho? Aparentemente, e ele sustentaria essa afirmação, pensa nos congelados, nas encomendas, na regulagem das balanças, nos jornais em que embrulha suas mercadorias. Tem a alma de um profissional. Há, porém, em um recanto de sua mente, um setor extraviado que, negando a indiferença, o leva a se comover com a figura de seus fregueses. Tomem o caso de José Kozu, o relojoeiro da loja vizinha que, todas as manhãs, com seu bassê, vem comprar a carne do almoço. Agora mesmo, ei-lo a entrar no Açougue do Transatlântico — nome que Martinho escolheu porque, bem diante do caixa, guarda a gravura de um navio de passageiros, que já estava ali quando ele herdou a loja e na qual, por alguma superstição que não pode reconhecer, jamais ousou tocar. Assim, mudou o nome antigo, “do Teles”, referido a seu tio morto, Celso Teles, pela denominação mais romântica, “do Transatlântico”, que, acredita, confere mais elegância à casa.
É uma bela gravura e sempre que entra para comprar a carne do almoço, José Kozu se põe a fitá-la, saudoso, dizem, de uma viagem que, ainda na juventude, não conseguiu fazer ao Japão. Tenebrosa essa saudade de algo que não aconteceu, mas assim é o senhor Kozu, um homem cuja vida se resume a planos inacabados, projetos esquecidos, frustrações, vazios que agora compensa mimando o bassê Olavo. Ali se deixa ficar Kozu, petrificado diante da gravura, mas se o observarmos bem veremos que lágrimas duras, de velho, escorrem ao longo de seu nariz, e mais parecem fios de catarro. Um velho não chora, um velho se desfaz, diria Martinho, ou talvez tenha mesmo pronunciado algum dia essa frase torpe, que sintetiza sua almejada indiferença. Mas é mentira: quando Kozu entra, nem ainda se aproximou da gravura, Martinho Arp já sente o coração disparar, como num poema mineiro, e atribui esse tumulto a uma disritmia que, desde a infância, os médicos nele diagnosticaram. Pode negar que o velho o comove, mas não pode sustentar essas palpitações, tanto que sempre evita atendê-lo, deixando a tarefa para o jovem Artur, seu auxiliar, que o faz com mau humor, já que Kozu é quase surdo.
Agora mesmo entra a Srta. Cross, como a caneta, e Martinho se entusiasma com seus ombros pontudos de bailarina, ombros “de cabide”, diz, nos quais gostaria de se dependurar — mas atribui esta exaltação a uma certa repulsa, que vem da infância, às pessoas sardentas. Teve inclusive um amigo, Douglas, um menino com a face cheia de sardas cuja presença, apesar de amável, lhe causava alergia, a um ponto em que, em certa tarde em que lutaram nos fundos da casa lotérica, verrugas vermelhas, e sangrentas, por puro mimetismo, surgiram na face de Martinho Arp, e ele até hoje, homem adulto, pode exibir a sombra das cicatrizes. O médico disse que ele somatizou a doença do amigo — mas não eram amigos, eram inimigos, e além disso Martinho não acredita em médicos, ou em somatizações. Os mesmos calores, contudo, o tomam quando a Srta. Cross entra na casa. Diz a si mesmo que ela sempre escolhe as horas erradas para suas compras, em que o salão está cheio e abafado, daí a coincidência do calor, na verdade emitido pelo bafo e pelos suores dos fregueses.
Ali vejo Martinho Arp, resfolegando, a se amparar na caixa registradora, mais uma vez sensível a alguma visita, ou a alguma frase que apenas entreouviu, comovido com o simples olhar da velha Lurdes que, de bengala, vem comprar seu bife de segunda. De olhos fechados, ampara-se nas teorias que se esforça para desenvolver a respeito da relação entre os homens e as carnes, sujeitos com a mente mole dos filés, mulheres com seios que parodiam as maminhas, rapazes com o espírito em picadinho, crianças teimosas como uma posta cheia de nervos que, mesmo com o facão bem afiado, custa-se a cortar. Homens, mulheres, rapazes, crianças, Martinho Arp pensa, simples amontoados de carnes, peças vulgares a funcionar por impulso e costume, por que se emocionar com eles? Carnes que nascem, crescem, murcham e morrem, pedaços de carne dependurados na rotina da vida, ele filosofa, partes imóveis e congeladas, de um todo que ninguém sabe o que é, que ninguém é capaz de ver. O mundo, na verdade, não passa de um imenso frigorífico no qual todo movimento, toda exaltação, é puro desperdício. Tolices que Martinho pensa e repensa, agarrando-se às idéias como pode, enquanto o coração dá saltos e mais saltos.
Pode-se compará-lo a um vidente, que desconsidera as coisas banais, para ceder lugar às grandes luzes, às revelações fabulosas, às iluminações. É o que o senhor Kozu lhe disse um dia, depois de ouvir, apesar da surdez, a um raro desabafo do açougueiro. Naquela manhã, Martinho Arp sentia-se quase imobilizado, sob o peso de tantas idéias que, em sua mente, se multiplicavam e se multiplicavam, com o único intuito de substituir os sentimentos, de expulsá-los de cena. Você pensa para não sentir, lhe disse Kozu, enquanto seu bassê se coçava junto ao balcão de frios. Era uma voz que vinha do distante mundo da frustração, Kozu era alguém que, se falava, não era por falar, mas sim porque compartilhava aquela dor. Não eram palavras soltas e dispersas como os pensamentos de Martinho, nada parecido com a frouxidão da sua teoria da similitude entre os homens e as carnes expostas num açougue. Kozu ainda disse: — Mas pensar para não sentir, isso não resolve! Tudo o que você consegue é fazer com que os sentimentos fervilhem. Não disse muito mais, e Martinho não julgava que algum dia fosse ouvir do senhor Kozu coisas tão enigmáticas, e só por isso lhe deu atenção.
Enquanto o velho conferia o troco, pediu ao jovem Artur que cuidasse sozinho da freguesia e retirou-se para a ante-sala, ali ficando, boquiaberto, diante das peças sangrentas. Ainda podia ouvir o bassê de Kozu, que rosnava para algum freguês novato, ou para a sombra de um pernil. Pensou: — Se não consigo estabelecer a supremacia da indiferença, se o mundo continua a me golpear como a um cachorro velho, o melhor é me impedir de sentir. Ergueu-se, abriu a porta do frigorífico e, postando-se ao lado de umas peças nobres, uma posta argentina encomendada por uma churrascaria, e entregando-se à escuridão absoluta, ali se trancou.