José Luís Peixoto nasceu em 1974 na freguesia de Galveias, no concelho de Ponte de Sor. É licenciado em Línguas e Literaturas Modernas (inglês e alemão) pela Universidade Nova de Lisboa. Tem publicado livros de poesia e de prosa, e também escreve para o teatro. Recebeu o Prêmio Jovens Criadores nos anos de 97, 98 e 2000. Em 2001, o seu romance Nenhum olhar ganhou o Prêmio José Saramago.
Com José Luís Peixoto, começamos a nos afastar do território da ironia e do cotidiano, ocupado pela poética de Adília Lopes, Gonçalo M. Tavares e Inês Lourenço. Com José Luís Peixoto, começamos a abandonar a superfície da esfera literária, quente e luminosa, para seguir na direção do núcleo frio e escuro. Seus poemas também se alimentam de narrativas do dia-a-dia e da memória, mas a linguagem já não é mais tão transparente. Golpes de navalha agora dilaceram o discurso que, na obra dos três poetas citados, protegido dessa violência toda, flerta tranqüilamente com a crônica e a anedota. Nas esquinas da sensibilidade espontânea, esses golpes de navalha põem a nu uma estratégia muito parecida com a escrita automática. Eu disse parecida. Certa vez, conversando sobre seu processo criativo e essa fragmentação do discurso, eu perguntei a ele:
Você é um autor metódico, disciplinado, objetivo e constante. Em sua opinião, o bom texto literário depende um 1% da inspiração e 99% da transpiração?
Ele respondeu: Na literatura tem naturalmente de existir espontaneidade. Sem essa característica dificilmente existirá arte. No meu caso existem dois processos de escrita algo diferentes: o da poesia e o da prosa. Se no caso da poesia a espontaneidade é uma característica central, no caso da prosa a transpiração, o trabalho pesado, é fundamental.
Eu: No caso da poesia, a espontaneidade é que conduz à beleza?
Ele: “So very difficult, Yates, beauty is so difficult”, disse Pound. Tento ser verdadeiro ao escrever, porque os bons leitores sempre sentem a falsificação. A mentira é impossível na boa literatura. O que eu procuro, livro após livro, mais do que a beleza ou qualquer outra coisa, é a verdade.
Eu: Mas a verdade é algo que apavora. As pessoas não querem a verdade, as pessoas querem a ilusão. Elas têm pavor da verdade.
Ele: O medo é o muro altíssimo que impede as pessoas de fazer muitas coisas. Claro que o medo também pode ser positivo. Ele às vezes nos protege do perigo, mas na maior parte do tempo ele é negativo, é algo que nos faz mal. O pior medo é o medo de nós mesmos, e a pior opressão é a auto-opressão. Antes de tentar lutar contra qualquer outra coisa, penso que é importante lutarmos contra a auto-opressão e conquistarmos a liberdade de não ter medo de nós mesmos.
Eu: De não ter medo de nossos livros. Principalmente dos livros que exigem muito esforço do leitor.
Ele: A leitura sempre se depara com uma série de obstáculos. É muito mais fácil sentar no sofá para ver televisão do que para ler um jornal, por exemplo. A questão é esta sociedade da facilidade, que deixou de perceber que as coisas que dão certo trabalho também são as que dão mais prazer, porque são conquistadas. A leitura dá certo trabalho e temos de conquistar mais espaço para ela na nossa vida, temos de nos empenhar para absorvê-la completamente, para que faça sentido.
Livros do autor
No Brasil: Nenhum olhar (Agir, 2005). Em Portugal: Cemitério de pianos (Bertrand Editora, 2006); Antídoto (Temas e Debates, 2005); A casa, a escuridão (Temas e Debates, 2002); A criança em ruínas (Quasi Edições, 2001), entre outros.
Poemas De José Luís Peixoto
esse filho só de sangue que te escorre pelas pernas
sou eu. podíamos ter ensinado a ele as palavras, mas
o seu nome é agora de sangue. podíamos ter
mostrado a ele o céu, mas o seu olhar é agora de sangue.
podíamos ter fechado a sua mão pequena dentro da
nossa, mas a sua mão é agora de sangue. esse filho
só de sangue que te escorre pelas pernas e morre
sou eu, o meu sangue e a minha memória.
Palavras
as tuas mãos, ou a tua pele, ou os teus lábios.
o teu olhar. o teu olhar me lembra sempre que
ou o teu cabelo, ou a maneira exata como
o teu rosto. o teu rosto. ou o teu corpo que
adormece onde o vento não se esqueceu de
ou cada uma das tuas palavras, palavras,
palavras numa língua de céus impossíveis.
…
O escritor
ele disse não sei por que escrevo o teu nome.
eu olhei para ele. eu disse o meu nome não
é tudo o que você pode escrever.
ele escrevia o meu nome num papel. ele sentava
numa cadeira e o luar era a luz de um candeeiro
sobre as palavras escritas.
ele disse eu te amo.
ele disse tenho medo de que um dia deixe de poder
escrever o teu nome. eu disse o meu nome não
é tudo o que você pode escrever.
ele escreveu o meu nome durante muitos anos.
e eu perguntei por que você continua escrevendo
o meu nome? ele olhou para mim. e perguntou
quem é você?
…
Descrição do martírio
lançaram-no ao chão e as lâminas. cortaram seus braços
e depois suas pernas. arrancaram seus braços e suas pernas.
o corpo. sim, o sangue.
deixaram-no sozinho e o corpo. lentamente apodreceu devagar.
a pele e a carne a apodrecer diante das crianças e da inocência.
a carne podre até os ossos.
o martírio foi quando ela partiu. ele olhou para ela. e não
conseguiu acenar, não conseguiu dizer palavras impossíveis
como a palavra adeus.
…
A tradutora
você lê. antes de você, ela muda as palavras. antes dela,
eu escrevo. eu passei por aqui, ela passou por aqui,
você passa agora por aqui.
você entende isso? ela está onde você estará. eu estou onde
ela estará. eu corro pelas palavras, ela me persegue.
você corre atrás de nós para nos ver correr.
eu escrevo casa e continuo pelas palavras. ela segura
as letras da casa e escreve vida. você lê vida e entende casa
e vida. eu não sei o que você entende.
eu corro. ela corre atrás de mim. você corre atrás dela.
não existimos sozinhos. sorrimos quando paramos,
quando nos encontramos. aqui.
…
A cidade
ele caminha entre as pessoas que caminham
na praça. eu o vejo caminhar. cada passo.
cada instante de olhar. os meus olhos desviam-se
das pessoas paradas na praça. cada rosto.
ele sabe para onde vai. cada rua. ele caminha
nas ruas distantes que tem dentro de si.
eu o vejo se perder. os meus olhos são um
homem a quem cortaram as pernas e os braços.
…
Explicação da eternidade
devagar o tempo transforma tudo em tempo.
o ódio transforma-se em tempo, o amor
transforma-se em tempo, a dor transforma-se
em tempo
os assuntos que julgamos mais profundos,
mais impossíveis, mais permanentes e imutáveis,
transformam-se devagar em tempo.
por si só o tempo não é nada.
a idade de nada é nada.
a eternidade não existe.
no entanto a eternidade existe.
os instantes dos teus olhos parados em mim eram eternos.
os instantes do teu sorriso eram eternos.
os instantes do teu corpo de luz eram eternos.
você foi eterna até o fim.