7 poetas portugueses

Durante sete edições, Rascunho apresentará a poesia de Adília Lopes, Gonçalo M. Tavares, Inês Lourenço, José Luís Peixoto, José Miguel Silva, Luís Quintais e Manuel de Freitas
Adília Lopes, autora de “Obra”
01/04/2007

Que significa para você, dileto leitor, a noção de sagrado? E a de poesia? Você consegue ver os pontos de contato que há entre ambas? Eu consigo. Não acredito nas doutrinas e nas instituições religiosas, todas baseadas no medo, na angústia e na culpa, mas acredito no sagrado. Não estou falando do sagrado consagrado pela tradição católica, judaica, islâmica, budista, ioruba… Estou falando de outra experiência muito mais suave e sutil, que não envolve a crença em deuses, na alma imortal e na vida após a morte. Estou falando de algo que, misturando o sensorial e o intelectual, se confunde freqüentemente com a estética.

Axis mundi: nas mais diversas tradições religiosas, eixo universal que liga a terra ao céu.
O sentimento do sagrado, para mim, é a experiência mais profunda proporcionada pela tensão entre a matéria e a subjetividade humana. Para as pessoas que, como eu, só crêem nos fenômenos da realidade física, o sagrado não está nas mesquitas, nas igrejas, nos templos ou nas sinagogas, verdadeiros escritórios povoados de burocratas. Para essas pessoas que, como eu, não acreditam na alma imortal e desconfiam abertamente dos camelôs da salvação, o sagrado está apenas na poesia.

Poesia: qualidade presente em certos artefatos culturais, capaz de despertar o sentimento do belo e provocar o encantamento estético.
Há muitos outros filtros para se ler a boa literatura, disso não resta dúvida, mas foi pelo filtro do sagrado que eu preferi ler os livros de sete dos mais interessantes poetas portugueses contemporâneos: Adília Lopes, Gonçalo M. Tavares, Inês Lourenço, José Luís Peixoto, José Miguel Silva, Luís Quintais e Manuel de Freitas. Apesar das inevitáveis e sempre bem-vindas diferenças, esses sete poetas trabalham essencialmente com a mesma matéria-prima: o cotidiano. Melhor dizendo, com a transfiguração do cotidiano.

A noção de sagrado tem sido constante associada à obra de, por exemplo, Herberto Helder, Mário Cesariny e Rosa Alice Branco, poetas da alquimia e da transcendência. Ambos praticam o que eu chamo de poesia subterrânea, cuja especialidade é o mergulho no estranho e no desconhecido, no movimento que está acima, atrás, nas laterais e abaixo do disciplinado mundo sensível. Mais difícil e por isso mais desafiador do que associar o sagrado ao subterrâneo é associá-lo à superfície.

A superfície da esfera literária é quente e luminosa porque recebe o rotineiro calor e a conservadora luz de nossos hábitos e costumes mais grosseiros e mecânicos. O núcleo é frio e escuro porque está totalmente afastado dessa vulgar fonte de calor e luz. As forças que o aquecem e animam são de outra ordem, elas estão além e aquém do burocrático vaivém do cidadão médio, do homem de sensibilidade embotada, do sujeito enfraquecido física, moral e espiritualmente.

Os sete poetas que serão apresentados ao longo de sete edições do Rascunho são sete exemplos de poetas contemporâneos portugueses cujos poemas encontram-se na delicada superfície infinita, ou muito próximo dela. Seus poemas são crônicas da vida privada, curiosos retratos dos anseios e das decepções do cotidiano lusitano. Neles nossos hábitos e costumes mais grosseiros e mecânicos surgem totalmente transfigurados pela linguagem simples e direta.

Adília Lopes
O que se sabe sobre Adília Lopes? Pouco, muito pouco. Por quê? Porque ela parece não gostar muito de badalação. Apesar disso sabe-se que ela nasceu em 1960, em Lisboa, e hoje vive escondida na capital portuguesa. O que se sabe sobre os livros de Adília Lopes? Várias coisas. Sabe-se que o primeiro foi publicado em 1985, em discreta edição da autora, e se chama Um jogo bastante perigoso. Sabe-se também que logo em seguida vieram muitos outros, todos nascidos no circuito das microeditoras. O que se sabe sobre os poemas de Adília Lopes? O essencial e muito mais. Sabe-se que neles imperam as categorias da prosa: eles quase sempre contam histórias. Sabe-se que neles os incidentes, as personagens e os objetos minúsculos do cotidiano brilham intensamente. Porque brilham com muito senso de humor. Porque brilham com bastante melancolia. Porque brilham com doméstica e dolorosa comicidade. Sabe-se também que esses poemas irreverentes, cheios de citações e anedotas autobiográficas, sempre desagradaram os leitores mais esnobes.

Livros da poeta
No Brasil: Antologia (2002), publicada pela 7Letras em parceria com a CosacNaify. Em Portugal: Caras baratas (2004), publicado pela Relógio d’Água; Florbela Espanca espanca (1999), publicado pela Black Sun Editores; A bela acordada (1997), publicado pela Black Sun Editores; O marquês de Chamilly (Kabale und Liebe) (1987), publicado pela Hiena, entre outros títulos.

Poemas de Adília Lopes

Coup de grâce

Uma mulher
nunca pode
apaixonar-se por um homem
antes de o homem
se apaixonar
por ela
o homem pune-a
por isso
e por muito mais
o homem não a abate
vai-se embora
fechado em copas
a mulher pune-se
a si mesma
se não tem vergonha
por si
tem pena
menina e mãe
num saco
estóicas
como a pescada
que antes de o ser
já o era

O parque de diversões

Eu julgava que aquilo era
um parque de diversões
saía-se como se entrava
e não acontecia nada irreversível durante
é o que é um parque de diversões
quando se é adolescente
mas não
quando dei por mim
já lá estava dentro
e não me lembrava
de ter entrado
quando disse agora quero
ir embora
riram ah minha querida
deste parque não se sai
quem aqui vem não volta
não se volta atrás
então comecei a pensar
que ia passar o resto de meus dias
no parque de diversões
acabas por aprender vais ver
a fazer das tripas coração
te habituas vais ver
nos primeiros dias dói
dá vontade de vomitar
depois percebe-se que
no parque de diversões que é
um lugar triste
pode não se ser triste
sai muito caro
mas poder pode

Dois poemas d’O poeta de Pondichéry

3
Parti para fazer fortuna
e para escrever poemas
de que eu (e Diderot) pudéssemos gostar mais
reli os poemas que escrevi em Pondichéry
não gosto deles
de tudo o que escrevi em Pondichéry
guardo um ou dois poemas
esses poemas são a parte visível de um iceberg
de que acho a parte submersa envergonhante
e não ponho as mãos no fogo pela parte visível
uma metáfora que dura muito tempo
leva a dizer disparates como este
uma metáfora permite aproximações mais vertiginosas
do que o bólide inter-galático
mas não deve durar muito tempo
penso que troquei diamantes por papel
que agora rasgo sem furor
dediquei-me a um luxo que era um lixo
no cofre do tesouro em vez do tesouro
estava um ninho de víboras
ou de cotão (que é mais desolador do que víboras)
se escrevesse um poema sobre Diderot
escrevia os teus ossos e os teus olhos
evito escrever
e vivo como escrevo

4
Tenho pelos meus poemas
a ternura que a coruja tinha pelos filhotes
mas não tenho a sua cegueira
porque sei que Diderot acha os meus poemas maus
a coruja disse à águia
podes comer os passarinhos que quiseres
mas não comas os meus filhos
os meus filhos são os passarinhos mais bonitos
que encontrares na floresta
a águia comeu os filhos da coruja
comi os teus filhos porque eram feios
disse a águia à coruja
as comparações são muito perigosas
(como os diamantes)
certas comparações valem fortunas
não vejo o que possa ser comer poemas
talvez fazer contas ou hieróglifos obscenos
nos papéis onde estão os meus poemas
não vejo quem possa ser a águia
Diderot não é a águia
mas uma pessoa neste momento
pode estar fazendo contas e hieróglifos obscenos
num dos meus poemas
não vejo uma águia a fazer contas e hieróglifos obscenos
nos filhos de uma coruja
talvez Walt Disney visse

Minha avó e minha mãe
perdi-as de vista num grande armazém
fazendo compras de Natal
hoje trabalho eu mesma para o armazém
que por sua vez tem tomado conta de mim
uma avó e uma mãe me foram
entretanto devolvidas
mas não eram bem as minhas
ficamos porém umas com as outras
para não arranjar complicações

Uma das coisas
que Marianna mais detesta
é a publicidade
ao código postal
detesta o meio caminho andado
lembra-lhe o paradoxo
de Aquiles e a tartaruga
meio caminho andado
meio caminho
e mais um quarto
andado às voltas
torcendo o lenço nas mãos
meio caminho e mais um
oitavo andados
a irmã Otávia cheira rapé
que desgosto
meio caminho e mais dezesseis
avos andados
favos e aves que nojo
meio caminho e mais trinta
e dois avos andados
qualquer dia faço eu trinta anos
e assim por diante que raiva

Um figo

Deixou cair a fotografia
um desconhecido correu atrás dela
para lhe entregar
ela recusou-se a pegar na fotografia
mas a senhora deixou cair isto
eu não posso ter deixado cair isto
porque isto não é meu
não queria que ninguém
e sobretudo um desconhecido
suspeitasse que havia uma relação
entre ela e a fotografia
era como se tivesse deixado cair
um lenço de sangue
porque era ela quem estava na fotografia
e nada nos pertence tanto como o sangue
por isso quando uma pessoa se pica num dedo
leva logo o dedo à boca para chupar o sangue
o desconhecido apercebeu-se disso
é um retrato da senhora
pode ser o retrato de alguém muito parecido comigo
mas não sou eu
o desconhecido por ser muito bondoso
não insistiu
e como sabia que os mendigos
não têm dinheiro para tirar fotografias
deu a fotografia a um mendigo
que lhe chamou um figo

No more tears

Quantas vezes me fechei para chorar
na casa de banho da casa da minha avó
lavava os olhos com xampu
e chorava
chorava por causa do xampu
depois acabaram os xampus
que faziam arder os olhos
no more tears disse Johnson & Johnson
as mães são filhas das filhas
e as filhas são mães das mães
uma mãe lava a cabeça da outra
e todas têm cabelo de criança loira
para chorar não podemos usar mais xampu
e eu gostava de chorar a fio
e chorava
sem um desgosto sem uma dor sem um lenço
sem uma lágrima
fechada à chave na casa de banho
da casa da minha avó
onde além de mim só estava eu
também me fechava no guarda-vestidos grande
mas um guarda-vestidos não se pode fechar por dentro
nunca ninguém viu um vestido a chorar

O mongolóide alegra-se
com a viagem de automóvel
a que mais ninguém acha graça
e o atrasado mental diverte-se
com a caixa de sutiã vazia
que traz uma menina na capa
com um simples sutiã branco
e ar asseado
duas penas vivas para os outros
pobres de espírito ricos de espírito
lixo biológico da luta pela vida
ganhadores
alquimistas

Eclesiastes

Seulete suy et seulete vueil estre
Suélete m’a mon doulx ami laissiee
Christine de Pisan

Tempo de foder
tempo de não foder
saber gerir
os tempos
compor
saber estar sozinha
para saber estar contigo
e vice-versa
aqui estão as minhas contas
do que foi

Meteorológica [para o José Bernardino]

Deus não me deu
um namorado
deu-me
o martírio branco
de não o ter

Vi namorados
possíveis
foram bois
foram porcos
e eu palácio
e pérolas

Não me queres
nunca me quiseste
(porquê, meu Deus?)

A vida
é livro
e o livro
não é livre

A solidão
de Adão
antes da criação
de Eva
devia ser
terrível
mas a minha
é bem pior
os homens
que escreveram
o Gênesis
não pensaram
que Adão em vez de saudar
Eva
com um grito de júbilo
a mandasse embora
com sete pedras na mão
mas eu acho
que foi
o que me aconteceu
temendo isso
Deus
não me deu
o papel de Eva
nem o de Maria
porque também
São José
me tinha corrido
a pontapé

Duas irmãs solteironas
vivem juntas
com uma gata
que nunca deixam sair
uma das irmãs casa
a outra pede-lhe
uma carta
a relatar pormenorizadamente
a noite de núpcias
a outra manda-lhe
um telegrama
“mana, solta a gata”

(anedota contada na aula pelo meu professor de Filosofia no Liceu Pedro Nunes, Dr. Arnaldo Pereira dos Santos)

Valério Oliveira

É escritor e poeta. Autor, entre outros, de Todos os presidentes.

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