Saramago, demasiadamente Saramago

O escritor português sempre esteve em busca de uma relação e comunicação com seu tempo e sua realidade
O português José Saramago, autor de “Ensaio sobre a cegueira”
01/07/2010

Em 1947, aos vinte e quatro anos, José Saramago publicou seu primeiro romance, Terra do pecado, livro que nunca mais leu. Tempos depois, escreveu Clarabóia, que permanece inédito até hoje, e sobre o qual o escritor português reserva a seguinte opinião: “Quando eu já cá não estiver façam com ele aquilo que quiserem”. Ao contrário do que pode parecer, não se trata de desprezo à própria obra, mas de uma visão extremamente nítida a respeito de si mesmo na época em que havia escrito seu segundo livro: “Eu não tinha muito a dizer”.

Essa consciência crítica o fez abandonar a ficção por quase vinte anos. Saramago tinha a convicção de que o que tinha escrito era apenas reflexo e segmentos de suas leituras, não possuía nada realmente seu, que viesse de sua personalidade e pensamento sobre o mundo. E essa qualidade, ou característica, ele diria mais tarde em entrevistas, já devidamente reconhecido e consagrado como escritor, é a essência e raiz principal da literatura contemporânea, ou de toda literatura. “Não há mais histórias para contar. Não tem muita importância a história que se conta. O que tem importância é a pessoa que está dentro do livro, o autor.” A afirmação parece pôr o autor no centro do mundo da criação literária, e exaltá-lo a ponto de obscurecer sua obra, mas não é sobre vaidade que falava Saramago, e tampouco sobre uma literatura ideológica, ou engajada, criada para passar uma determinada mensagem, estipulada pelo autor. Saramago se referia ao ser humano atrás do livro, que também, estava, inevitavelmente, dentro dele, com as suas experiências, sua formação, sua perspectiva e visão de mundo. Nesse sentido, apenas essa pessoa, o escritor, com a sua bagagem existencial, poderia criar com consistência, no caso de um bom livro, ou fragilmente, no caso inverso, a sua história. “O que estou a aproveitar são sedimentos de leituras”, concluiu após a escrita dos dois primeiros romances. Aos vinte e poucos anos, o jovem autor percebia de alguma forma que escrever ia além de fazer boas frases e de contar uma história, “não vivi nada, não sei nada”, constatou.

Entretanto, os longos anos que separam Terra do pecado de Levantado do chão não foram passados em lamento ou arrependimento pela distância com a literatura. Distância, aliás, que não existiu. Saramago viveu por 19 anos rodeado de livros, aprofundando como leitor a sua relação com a ficção. “Vivia sem nenhuma angústia pelo fato de não escrever”, disse, uma vez. “E tampouco vivia como se acumulasse experiência para um dia me tornar escritor”, esclareceu. Em diversas ocasiões, Saramago frisou que a leitura o satisfazia completamente. Como entrou no mundo dos livros relativamente tarde, consta que o seu primeiro exemplar foi comprado aos vinte anos, sentia-se como um menino a descobrir o mundo. “Começar a ler foi para mim como entrar num bosque pela primeira vez e encontrar-me, de repente, com todas as árvores, todas as flores, todos os pássaros. Quando fazes isso, o que te deslumbra é o conjunto. Não dizes: gosto desta árvore mais que das outras. Não, cada livro em que entrava, tomava-o como algo único.”

Neto e filho de camponeses, Saramago teve o seu primeiro contato com a narrativa de forma inteiramente oral. “Minha família era analfabeta”, ele revela, “todas as histórias que conheci na minha infância eram contadas, narradas, nunca lidas ou escritas”. Mais tarde, Saramago refletiu sobre o seu estilo único, ponderando que ele não deixa de ser o resultado dessa primeira experiência. “Não existe pontuação quando se fala. Falamos em um fluxo modulado por nossos pensamentos e emoções.” Em Levantado do chão, livro que marcou o seu retorno à literatura, embora já tivesse publicado, em 1966, Poemas possíveis, o escritor português encontrou e definiu o seu estilo pessoal e singular de escrever. Passado no universo rural de Portugal, no século 19, Saramago se deparou, no processo da escrita, com suas próprias lembranças. “Era um mundo no qual a cultura de contar histórias predominava, e eram passadas de geração em geração, sem que se usasse a palavra escrita.” Levantado do chão mostra a luta do povo contra a opressão dos latifundiários e das autoridades oficiais e clericais, deixando ecoar a posição política do escritor. Saramago sempre foi declaradamente comunista. Um “comunista hormonal”, afirmava constantemente. No entanto, além da política, os amigos e pessoas mais próximas, incluindo a sua mulher Pilar Del Rio, afirmam que na essência das posições ideológicas do escritor está o ser humano. “Tudo que é humano o interessa”, disse Pilar. “Saramago não quer estar distante, mas sempre o mais próximo possível de todas as questões referentes à humanidade.”

Saramago menino não se perdia em fantasias, não criava para si um universo imaginário que o distanciava da realidade, como fazem tantas crianças, e como vemos nas memórias de muitos escritores. Pelo contrário, era o mais real que o interessava. “Apenas via as coisas do mundo e gostava de vê-las.” Se via um sapo, ele declarou, parava para observá-lo como o maior tesouro do mundo. “O sapo, para mim, valia mais do que uma história”, disse. Esse olhar sempre voltado para fora, sempre em busca de relação e comunicação com o seu tempo e a sua realidade, não significa extroversão, mas, pelo contrário, uma introspectiva necessidade de conhecimento e intimidade com o mundo tal qual ele se apresenta, assim como com seus habitantes, o ser humano. Essa busca está presente no rapaz que, após escrever o seu primeiro livro, percebeu com desalento que ainda não havia nele nada de seu. E o que faltava não era nada referente a sua biografia, aos relatos de acontecimentos e expêriencias de sua vida, ou a uma possível invenção de enredos e personagens, mas a uma singular construção de universos e significados criada a partir disso tudo. Trabalho de moldar consistências que, Saramago percebeu, cabe unicamente ao autor. Trabalho que envolve também desenvolver a própria personalidade, conhecer-se profundamente. Mais do que escrever boas frases e contar uma história, construir universos significativos, oferecer ao mundo outra visão dele mesmo.

Claudia Lage

Claudia Lage é escritora. Autora do romance Mundos de Eufrásia, entre outros.

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