“Escrevo sorrindo com as palavras, mas o meu coração está como se pudesse partir, partir como as coisas que se quebram, em fragmentos, em cacos, em lixo”, escreveu Bernardo Soares, um dos heterônimos mais enigmáticos de Fernando Pessoa. Enigmático porque incompleto, feito de reminiscências, pulsações. “É um semi-heterônimo”, disse o próprio poeta numa carta, “porque, não sendo a personalidade a minha, é uma simples mutilação dela”. Mutilar, cortar; a parte que pulsa, lateja, quer e rejeita o todo. Um misterioso reflexo, que inevitavelmente traça paralelos com o escritor. O ajudante de guarda-livros da cidade de Lisboa era solteiro como Fernando Pessoa, e também como ele vivia sozinho num quarto alugado, próximo ao escritório onde trabalhava. “O paradoxo não é meu; sou eu”, disse o poeta, repartindo-se e fundindo-se no caráter múltiplo e controverso de sua obra. “Se alguma vez sou coerente, é apenas como incoerência saída da incoerência.” E a respeito dos heterônimos: “A origem mental dos meus heterônimos está na minha tendência orgânica para a despersonalização e para a simulação”. Repartindo-se em outros, Pessoa aproxima-se e distancia-se de si mesmo.
Ao transitar da poesia para a prosa, o escritor português impõe para si um desafio labiríntico. Na linguagem poética, é menor o esforço em transformar-se em outro, pelo contrário, a máscara dos heterônimos é vestida com certa facilidade. Ainda que contenha em Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos traços do Pessoa, os três possuem personalidades definidas e marcantes, independentes de seu criador. Na prosa, porém, Pessoa esbarra em si mesmo. A linguagem discursiva o aprisiona e o revela mais do que gostaria. Tanto no autor como em seu semi-heterônimo, há uma profunda inadaptação à realidade da vida. Sentimento sempre presente nas cartas de Pessoa, “Pus no Caeiro todo o meu poder de despersonalização dramática, pus em Ricardo Reis toda a minha disciplina mental, vestida da música que lhe é própria, pus em Álvaro de Campos toda a emoção que não dou nem a mim nem à vida”, escreveu o poeta ao amigo Adolfo Casais Monteiro. “A simulação é mais fácil, até porque mais espontânea, em verso.”
Na prosa de Bernardo Soares, no entanto, a simulação se fez lentamente, num consciente jogo de esconde-esconde. O livro do desassossego era assinado inicialmente pelo próprio Fernando Pessoa. Na maioria, os textos eram fragmentos de teor ensaísticos. Quando vieram os fragmentos do diário, porém, Pessoa saiu de cena para dar lugar ao seu semi-heterônimo. Percebeu que o projeto de um livro com anotações metafísicas e estéticas escapava de suas mãos. Reflexões existenciais começaram a vir à tona, dando ao livro outro formato, exigindo do escritor uma entrega para qual ele não se mostrava muito disposto. “Aquela produção doentia”, diz numa carta a Cortes-Rodrigues, “vai complexa e tortuosamente avançando”. Como se o livro tomasse rumo próprio, Pessoa adia sempre a tarefa de organizá-lo, deixando para depois o que acaba nunca se realizando. Em seus manuscritos, anotações ao lado dos textos, pontos de interrogação e dúvidas permeiam todas as páginas. Levantando questões nunca respondidas, Pessoa continuou a acrescentar fragmentos de textos ao livro, com a intenção de um dia rever cada parte e organizar o todo. A tarefa não cumprida terminou por dar forma a um livro amorfo, e fazê-lo único em sua multiplicidade. O livro do desassossego é um livro de mil faces, inacabado, incompleto, uma “autobiografia sem fatos”, segundo o próprio Bernardo Soares. Romance, anti-romance, diário-íntimo, antilivro, livro em ruínas, livro-desespero, livro-sonho, são termos com que a crítica posterior à morte de Fernando Pessoa e o descobrimento d’O livro do desassossego em seu baú literário, buscou conceituar a obra inconceituável, cujas amarras nem o próprio autor pôde dar.
Pessoa, no entanto, ao mesmo tempo em que tencionava dar ordem ao caos d’O livro do desassossego, percebia em sua falta de coesão e unidade uma correspondência íntima com a sua personalidade, definida por ele próprio como esquizofrênica. “A minha tendência orgânica e constante para a despersonalização e para a simulação”, vale refrisar o que disse em carta a Adolfo Casais Monteiro. Despersonalização que o fazia repartir-se, simulação que o forçava a encontrar-se. “Finge sem fingimento”, versou Ricardo Reis, “nada esperes que em ti já não existe”, escreveu o heterônimo neoclássico de Pessoa, “fingir é conhecer-se”. Estaria então, na falta de unidade e no caráter framentádo e repartido do Livro, a sua própria essência e natureza? “Felizes os que sofrem com unidade!”, escreveu Soares, “Aqueles a quem a angústia altera mas não divide, que crêem, ainda que na descrença, e podem sentar-se ao sol sem pensamento reservado.”
O processo criativo envolveu Pessoa a ponto de colocá-lo em xeque consigo mesmo. Se, na construção dos outros heterônimos, agia com uma precisão arqueológica, dando-lhes não só personalidade, mas passado, presente e futuro, como também preferências estéticas e estilo, com Bernardo Soares foi impossível agir do mesmo modo. Cai por terra a visão mítica deixada pelos outros heterônimos, tão sólidos e firmes em suas existências. É justamente a existência em desacordo e imprecisão, a não-existência, que encontramos em Bernardo Soares. E é justamente na desconexão estrutural d’O livro do desassossego que reside a sua potência criativa. Não é por ser também solitário, solteiro, redator e tradutor em um escritório comercial, triste e irônico como Fernando Pessoa, que Bernardo Soares lhe tira a máscara e lhe exige um esforço maior para construí-la, mas por ter se mostrado, da personalidade à escrita, em forma e conteúdo, inconstante e fluido, mutante e “despersonalizado” como o próprio poeta. Foi Pessoa que escreveu, mas poderia ter sido Bernardo Soares: “Eu sou a sensação minha. Portanto, nem da minha própria existência estou certo”.
O escritor português Jorge de Sena não conheceu pessoalmente Fernando Pessoa, mas, anos depois de sua morte, lhe escreveu uma belíssima carta. “Se me não engano, é esta a segunda carta que V. recebe depois de morto.” Sena não lamenta totalmente o desencontro dos dois em vida. “Apenas a curiosidade ficaria satisfeita; e, em contrapartida, jamais o Álvaro de Campos ou o Alberto Caeiro se revestiriam, a meus olhos, daquelas pungentes personalidades que lhes permitiu, e aos outros, o seu espírito sem realidade nenhuma. Porque esta é a verdade, meu Amigo: toda a sua tendência para a ‘despersonalização’, para a criação de poetas e escritores ‘heterónimos’ e não pseudónimos, significa uma desesperada defesa contra o vácuo que V. sentia em si próprio e à sua volta.” Sena comprendeu que havia em Pessoa não apenas a multiplicidade de entidades expressa em ‘seres fictícios’, mas também a própria ficção do ‘eu’; o Fernando Pessoa, que não era outro além dele mesmo, e não podia deixar de ser ele também em todos os outros. Como disse Sena, “E você, quando escreveu em seu próprio nome, não foi menos heterónimo do que qualquer um deles”.