Prosa, poesia porosa

Paulo Leminski se aventurou no romance com o mesmo espírito poético e libertário com que fazia poesia
Paulo Leminski por Osvalter
01/10/2011

Nas noites frias de Curitiba, um poeta anda pelas ruas com um comprido casaco colorido, em contraste total com os sobretudos escuros que passam por ele. Os longos bigodes negros ocupam parte do rosto, e o restante os óculos tratam de cobrir, deixando dois olhos brilhantes e inquietos à solta. Não é nenhum absurdo imaginar que, mesmo repleto de cores, o poeta, ao andar pelas ruas, não está fazendo outra coisa além de poesia. Eu te fiz agora/ sou teu deus poema/ ajoelha e/ me adora/. Será que ele criou esses versos nessa noite enquanto virava as esquinas? Ou será que foram outros: Aqui jaz um grande poeta/ Nada deixou escrito / Este silêncio acredito/ são suas obras completas. Mas pode ser que, em vez de poemas, o poeta estivesse embarcando em outra viagem, a prosa. Ainda mais que esse poeta de longos bigodes nunca gostou de marcar fronteiras, pelo contrário, gostava da mistura e da desordem que ela traz. Aqui jaz um artista/ mestre em disfarces /viver com a intensidade da arte/ levou-o ao infarte/ deus tenha pena/ dos seus disfarces.

Paulo Leminski tomava a inquietude como profissão de fé em tudo que escreveu, tanto que se aventurou no romance com o mesmo espírito poético e libertário com que fazia poesia. Por longos dez anos, se dedicou à escrita de Catatau. Sobre seu livro, ele próprio disse: “Catatau não tem enredo, tem apenas um contexto. Quase nada acontece, no sentido da narrativa do século 19, claro. No plano da linguagem e do pensamento, acontece tudo”.

Catatau foi recebido pela crítica como uma pequena jóia literária, que bebia em fontes como a poesia concreta e o tropicalismo, assim como, segundo o próprio poeta, Ulisses e Finnegans Wake, de James Joyce. A idéia do romance veio de repente, enquanto Leminski dava uma aula de História. Os alunos viram o professor se calar no meio de uma frase, se aproximar de sua mesa e começar a escrever rapidamente num caderno. “E se Descartes tivesse vindo para o Brasil com o militar Maurício de Nassau?”, anotou Leminski. Em seguida, desenvolveu o romance a partir dessa hipótese. René Descartes (cujo nome é latinizado para Renatus Cartesius, como era costume) chega em Pernambuco, especificamente na Recife holandesa de Maurício de Nassau, onde fica à espera de Articewski, polaco estrategista do exército da Companhia das Índias Ocidentais. Descartes, homem da razão, espera Articewski na expectativa de obter respostas para as infinitas perguntas levantas pelo seu contato com o mundo tropical, onde as paisagens, as línguas, os costumes, tudo lhe parece excessivo e desmedido.

“O poliglota analfabeto, de tanto virar o mundo, ver as coisas e falar os papos, parou para pensar ao pé de uma montanha. Assaltaram-no dois pensamentos. Um na língua materna, outro em língua estrangeira. O primeiro fez a pergunta, o outro respondeu. Resultado: sou pai de minhas perguntas e filho de minhas respostas”, escreveu Leminski em Catatau. O livro traça um criativo embate entre a razão cartesiana e a lógica transloucada dos trópicos. Disse o próprio autor: “O Catatau é o fracasso da lógica cartesiana branca no calor, o fracasso do leitor em entendê-lo, emblema do fracasso do projeto batavo, branco, no trópico”.

Apesar da boa recepção da crítica para seu romance de estréia, Leminski só retornou à prosa nove anos depois. O seu segundo romance, Agora é que são elas, segue uma linha diferente da experimentação lingüística desenvolvida no primeiro, o que garantiu o nariz torcido da crítica da época. A linguagem é propositadamente desleixada e aparentemente despretensiosa, ao contrário de Catatau, que possuía um projeto estético bastante definido. Esse aparente desleixo e despretensão, porém, esconde outra proposta criativa do autor, que escapou aos críticos na época do lançamento. Ultimamente, no entanto, Agora é que são elas vem ganhando grande valorização e sendo considerado como um dos grandes romances dos últimos anos, a ponto de merecer um entusiasmado ensaio do professor Boris Schnaiderman, escrito logo após a morte de Leminski, no qual ele ressalta a inquietação do escritor curitibano. Em Catatau, Leminski já havia rompido com a estrutura tradicional, mas a partir de outro prisma. O Catatau é um anti-romance, mas na linha da introspecção estética joyciana, cujas publicações do Ulysses e do Finnegans Wake despertaram nos críticos e teóricos um sentimento de esgotamento do gênero enquanto possibilidades de realização da linguagem. O Agora é que são elas segue por um caminho mais conceitual, que dificulta sua digestão sobretudo porque seu exercício metalingüístico está envolto por uma névoa de falsa fragilidade de enredo. A história não ocorre; se contradiz a cada impressão de avanço. Para ir ao encontro das reflexões, o leitor tem de atravessar a barreira da “porra-louquice” que se constitui o universo narrativo do texto.

Schnaiderman diz que Agora é que são elas é uma brincadeira com a impossibilidade de escrever um romance redondo hoje. “Essa visão redonda do século 20 acabou. O romance não é um ícone do século 20. Os grandes romancistas do século 20 nasceram no século 19. Kafka, Thomas Mann, Joyce fizeram a cabeça um pouco antes da Primeira Guerra Mundial. Seu universo era do século 19. Escritores com a cabeça feita no século 20 não são capazes de escrever um romance como se fazia antes. Em seus dois romances, Leminski buscou esgarçar os limites da tradição literária realista. Em Catatau, ao contestar o pensamento cartesiano, mostrando-o extremamente frágil e vulnerável às influências inebriantes das forças tropicais, e em Agora é que são elas, camuflando a linguagem numa máscara de desleixo, como se o desinteresse pela trama funcionasse como uma forma de contestar, inclusive, o próprio ato de contestação formal do romance. É uma negação da negação. Sim eu quis a prosa/ essa deusa só diz besteiras/ fala das coisas como se novas/não quis a prosa apenas a idéia/ uma idéia de prosa em esperma de trova/ um gozo uma gosma/ uma poesia porosa.

Claudia Lage

Claudia Lage é escritora. Autora do romance Mundos de Eufrásia, entre outros.

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