Aquilo a que a terminologia romântica chama gênio ou inspiração não é mais do que encontrar empiricamente o caminho, seguir o próprio olfato.
Italo Calvino
É conhecido o episódio em que o jovem e autor estreante Italo Calvino abafou por anos em sua mente a voz que suplicava para ele escrever uma história maluca passada na Idade Média na qual um visconde era partido ao meio por uma bala de canhão e assim mesmo partido cada metade começava a vagar pelo mundo, cada uma com uma personalidade, uma parte boa, a outra má, e as duas insuportáveis. Calvino preferiu, ao invés de escrever essa história, ceder aos apelos de seu tempo e dos intelectuais da época, que saudavam e abriam generosamente espaço em periódicos e jornais a livros de teor político, de temática socialista. No meio literário, os romances chamados de neo-realistas, com temas e enredos voltados para a realidade social eram aplaudidos e exaltados, enquanto os que se desviavam de alguma forma desse caminho recebiam olhares tortos, críticas severas, ou, ainda pior, o silêncio. Eram vistos como ultrapassados, e, seus autores, alienados. Calvino publicou o livro com a temática exaltada pelos intelectuais contemporâneos esperando boa receptividade e elogios, mas a crítica positiva não foi unânime. No meio político, elogiaram o tema. Nas resenhas literárias, o consideraram importante para o debate das questões da época. No entanto, ninguém foi capaz de dizer que havia gostado do livro. Calvino começou inclusive a desconfiar de que ninguém tinha passado da terceira página. Foi um amigo, também escritor, distante da política e da academia, que veio em seu socorro. Após uma conversa angustiada, confessou a Calvino que achou seu livro monocórdio e chato. Apesar da temática, era pouco consistente e não parecia dizer muito ao que veio. Ao voltar para casa, Calvino, arrasado, escutou novamente a voz que invadia sua mente contando uma história de outros tempos, com personagens e situações que extrapolavam a realidade e a verossimilhança. Vencido, deixou-se enfim levar por essa voz, que, percebeu depois, não lhe era desconhecida, muito menos externa ao seu universo pessoal. Não lhe vinha do lado de fora, como as opiniões e os ditames dos intelectuais, políticos e acadêmicos de literatura da sua época. Vinha lá de dentro, de um lugar impreciso, mas firme em sua inquietude e maneira de mostrar e visualizar o mundo.
Quando parou de resistir a essa voz, Calvino foi tomado por um incessante fluxo criativo que resultou no romance O visconde partido ao meio, livro que lhe trouxe imensa satisfação pessoal. Durante o processo da escrita, ficou inteiramente entregue à voz interior e só a ela. Descobriu assim o seu caminho na literatura, o seu modo peculiar de ver o mundo e de dizê-lo. “Compreendi que a tarefa do escritor reside apenas em fazer o que sabe fazer: no caso do narrador, isso reside no narrar, no representar, no inventar.”
Durante toda a sua carreira, Calvino se lembrou desse fato do início de sua vida literária como um precioso talismã. Graças a essa lembrança nunca perdeu a confiança em sua intuição criativa, que muitas vezes lhe levava a escrever histórias que iam na direção totalmente oposta à eleita tanto pelo mercado quanto pela crítica literária. “Há muitos anos parei de estabelecer preceitos sobre como se deveria escrever: de que adianta pregar certo tipo de literatura ou outro, se depois as coisas que se tem vontade de escrever são talvez totalmente diferentes? Levei algum tempo para entender que as intenções e opiniões não contam, conta o que alguém realiza”, disse o escritor anos depois, em uma entrevista, quando, apesar de ter seguido um caminho independente dos apelos e da crítica, já havia se tornado um escritor consagrado no mundo todo.
De posse do seu talismã, Calvino ainda levou dez anos para se considerar, de fato, um escritor. “Necessitava de tempo para consolidar dentro de mim a voz que me lançava ao universo fantástico, enquanto, simultaneamente, era impelido cada vez mais a lidar com os aspectos da narrativa. Me sentia atraído, não pela ilusão criada pela arte literária, mas pelos artifícios criadores dessa ilusão.” Enquanto a maior parte dos escritores de seu tempo buscava escrever uma representação da realidade, Calvino se direcionava para o caminho oposto. Não queria passar a impressão de que, ao ler seus livros, lia-se a vida. Queria que se fosse lida a vida escrita. Queria a consciência de que se lia um livro, uma história de ficção erguida pelas palavras e pelo jogo literário. “Calvino jamais substituiu a literatura pela vida”, disse Berardinelli, autor dos principais textos críticos sobre Calvino. “Nele a literatura permanece lucidamente um espaço bem-delimitado, bidimensional, no qual pela arte podem ser criados efeitos perceptivos ilusionistas, terceiras e quartas dimensões e jogos de espelho, mas onde permanece inconcebível que se sofra, que sejamos condenados, tornemo-nos imbecis, loucos ou culpados.”
Calvino não queria que o leitor esquecesse que estava envolvido em um processo de leitura, do mesmo modo em que mantinha a auto-suficiência do universo criado. “Em momento nenhum negaria a literatura como um espaço de experiências. Mas, para mim, os conceitos de mundo escrito e mundo não-escrito são mais abrangentes do que a oposição geralmente estabelecida entre a realidade e a ficção.” O texto escrito, ou o mundo escrito, para Calvino, é um universo próprio, distinto, assim como o mundo não-escrito. Ambos se relacionam, mas não se espelham. Se fosse para estabelecer uma diferença entre eles não seria a questão da verossimilhança, mas a da forma. “Você sabe melhor do que ninguém, sábio Kublai, que jamais se deve confundir uma cidade com o discurso que a descreve. Contudo, existe uma ligação entre eles”, está dito em As cidades invisíveis. Ligação que promove movimento contínuo entre um mundo e outro, e não a busca comparativa de referências e identificações. Consciência em relação próprio trabalho criativo adquirida por meio de uma escuta permanente à sua voz interior, o que levou o escritor a um caminho singular e original na literatura. Visão exposta em um dos seus inúmeros ensaios literários, nos quais pensava intensamente sobre o ato de escrever: “A palavra associa o traço visível à coisa invisível, à coisa ausente, à coisa desejada ou temida, como uma frágil passarela improvisada sobre o abismo”.