“Quando eu era pequena, não queria fugir com o circo, mas morar numa biblioteca”, me disse uma vez uma amiga escritora. Imaginei-a menina correndo entre estantes, a barra do vestidinho esvoaçante, enquanto ela formava, com volumes grandes, muralhas, com os pequenos, delicadas escadas, torres inatingíveis. “Bibliotecas eram estranhas”, ela continuou, “pareciam o lugar mais seguro do mundo, e, ao mesmo tempo, o mais divertido”. Minha amiga explicou que não imaginava seqüestros nem assaltos em uma biblioteca. Quem iria roubar livros? E havia o silêncio. Absoluto. “Que chegava às vezes a doer de tão bom. Tão diferente dos gritos nas ruas e nas casas.” Na biblioteca a diversão era garantida, ela continuou, e cheguei a vislumbrar, em sua voz, a entonação de criança, “Como não se divertir com Monteiro Lobato? Lygia Bojunga?” A minha amiga percebeu logo a minha reação ao ouvir nome de uma das minhas escritoras prediletas (Até hoje, moça feita, de salto alto, agenda cheia e rímel nos olhos). Se ela queria morar numa biblioteca, eu, quando menina, queria morar dentro de um livro: A bolsa amarela. Pensando melhor, não era exatamente dentro do livro que eu queria morar, mas dentro da própria bolsa amarela. Cheguei a pedir a minha mãe para fazer uma, bem grande. Grande o suficiente para caber todas as vontades, por mais desmedidas que fossem. A protagonista do livro de Lygia tinha três, (lembro que eu achava tão pouco): a de crescer (que eu não fazia nenhuma questão), a de ser garoto (erghh!) e a terceira… A terceira eu não podia achar pouco. A terceira me assustava: a de se tornar escritora. Um susto que eu também guardava secretamente em algum compartimento da minha bolsa.
“Se a sua primeira paixão por um livro foi A bolsa amarela”, minha amiga escritora disse, “a primeira paixão de Lygia foi As reinações de Narizinho”. “A mesma paixão de Clarice”, lembrei. Para mim, Clarice era aquela menina do conto A felicidade clandestina, que diariamente batia na casa de uma coleguinha de escola que lhe prometera emprestar o livro de Monteiro Lobato. Mas essa coleguinha era cruel, como nunca deveriam ser as filhas de donos de livraria, e diariamente fingia que havia esquecido o livro. “Eu, que não era dada a olheiras, sentia as olheiras se cavando sob os meus olhos espantados”, escreveu Clarice. A tortura se desfez semanas depois com a chegada da mãe, que descobriu perplexa o plano de sua filha. Imediatamente, ordenou que o livro fosse emprestado, e disse que a menina podia ficar com ele o tempo que quisesse. “O tempo que eu quisesse! É tudo que uma pessoa, grande ou pequena, pode querer”, Clarice escreveu. E o que se seguiu foi um ritual de amantes, “Chegando em casa, não comecei a ler. Fingia que não tinha o livro, só para depois ter o susto de o ter. Horas depois abri-o, li algumas linhas maravilhosas, fechei-o de novo, fui passear pela casa, adiei ainda mais indo comer pão com manteiga, fingi que não sabia onde guardara o livro, achava-o, abria-o por alguns instantes. Criava as mais falsas dificuldades para aquela coisa clandestina que era a felicidade. A felicidade sempre iria ser clandestina para mim”, Clarice escreveu. E nós, eu e minha amiga escritora, a lemos, hoje e sempre.
Será essa a lembrança ou sentimento que tentamos reavivar quando escrevemos? Pensei. Será que o escritor está sempre tentando resgatar, ou recriar, ao escrever a sua história, a paixão que sente ao ler? Como se sempre estivéssemos estendendo a mão para os grandes impactos com a leitura que tivemos, sempre buscando a fonte que despertou aquela sensação primeira: o amor pelos livros. “A Lygia leu As reinações de Narizinho mil vezes”, minha amiga disse que a grande escritora revelou, num belo livro intitulado Livro (perdoem a repetição, que aqui é até poética), que foi esse livro (de novo) de Monteiro Lobato que sacudiu a sua imaginação. A partir daquele instante, ela também quis imaginar. O mundo de repente não lhe bastava como era. Triste ironia de todo escritor, se há a imaginação, o que pode mais bastar?
“Eu quero escrever sempre de mãos dadas com essa menina”, disse minha amiga, “a menina que queria morar na biblioteca”. Eu a escutei, sentindo, em minhas mãos, a pequena presença de um roçar de dedos. “E eu, com a menina que queria morar na bolsa amarela.” Lembrei então de um episódio da minha infância, anterior à leitura do livro da Lygia Bojunga. Tão anterior, como se houvesse uma infância primeira, primitiva, sem signos e símbolos, desconhecida de significantes e significados. Infância, apenas.
Eu estava na alfabetização e ia enfrentar a minha primeira prova. Era de leitura. Ninguém sabia qual história a gente ia ler, a surpresa fazia parte do teste. Também fazia parte a leitura ser para a diretora da escola, não para a nossa professora querida. Sabe-se lá de onde vêm esses requintes de tortura, mas era assim. Lembro que estava todo mundo elétrico, a diretora tinha cabelos brancos em cachos de caracol em sua cabeça. Podia parecer um anjo, mas não era. Era uma mulher muito ocupada e muito séria. Para aumentar o requinte da nossa prova-tortura, ficávamos todos na sala, em nossas carteiras até sermos chamados pelo nome. Aí nos levantávamos e seguíamos a nossa professora querida por um corredor que lá pelos meus cinco anos achei enorme. Uma porta azul fechada então era aberta e lá estava: a diretora que de anjo só tinha os cabelos.
Lembro que atravessei o corredor comprido com a mesma ansiedade dos meus amigos. Entrei pela fronteira azul com a mesma expectativa assustada. Mas assim que vi os caracóis brancos, tentei me recompor. Olhei a diretora com desconfiança, sem deixá-la perceber que eu sabia que ela sabia que eu sabia muito bem que de nós duas ali, era eu, sentada na cadeirinha amarela, a única em desvantagem.
E foi quando tirei os olhos da diretora para a prova.
E, por uma dessas mágicas que acontecem e transformam uma coisa em outra, a prova de repente não era mais uma prova: era um livro.
E a diretora sumiu com seus cabelos de caracol branco e com a sua tortura requintada para algum reino longe muito longe da porta azul. Ali, ficou só a história. Lembro como se fosse hoje, era sobre um pintinho.
“De vez em quando, ainda procuro esse livro”, contei a minha amiga, “com a mesma alegria aflita que releio a Lygia Bojunga”. Como se quisesse reencontrar o primeiro namorado, aquele que não me beijava nem me levava ao cinema, mas que puxava meu cabelo e me dava o seu lanche no recreio, eu queria reencontrar esse livrinho. Folhear as suas páginas, resgatar e eternizar aquela primeira sensação de encantamento. “Já reparou como sempre voltamos aos nossos primeiros livros?”, minha amiga disse, “relemos mil vezes e releremos até o final de nossas vidas aqueles livros que nos despertaram para a leitura, o nosso primeiro amor”.