O músico em Cortázar

Autor argentino aspirava na literatura à liberdade criativa do jazz
Julio Cortázar, autor de “Todos os contos”
01/01/2009

 

O som do saxofone desenha o espaço, percorre linhas imprevistas, perfura o ar, preenche o palco, invade a platéia, desliza pelas mesas, sobrevoa cabeças, desequilibra a bandeja do garçom, mergulha no copo com a bebida inebriante, bate em cheio no peito do rapaz sentado na última fileira, escorrega entre as pernas das moças, ultrapassa paredes, derruba portas, ganha a rua deserta, escala edifícios, invade uma janela aberta em busca de ar fresco e entra no quarto de um homem solitário que escreve enquanto o som de um sax vindo de um bar não muito distante penetra em seus ouvidos.

Naquela noite, o escritor procurava um personagem para o seu conto que tratava da própria procura do escritor por um personagem, do próprio conto para a escrita, da própria linguagem para a língua, da própria criação para o artista. As notas sopradas o levaram a um músico, mas não bastava isso, seria um músico-poeta, que procurasse ultrapassar a matemática da música como ele também procurava ultrapassar a lógica consensual da escrita. Um instrumentista que perseguisse o som como a expressão da existência em um instante único e fugaz, que por ser único anulava a repetição para o instante seguinte e exigia o novo. Uma perseguição sem fim. Um perseguidor.

Este músico-poeta havia chegado a um estado mental e físico deplorável. Conseqüência inevitável das noites extenuantes viradas no palco, do abuso das drogas e da bebida, da insatisfação com os limites da arte, que, ao contrário do que ele desejava, lhe escapava como sabão entre os dedos. A arte que sofre o irônico destino de nunca estar nela própria, de necessitar sempre de um meio para aparecer, um instrumento que lhe dê forma, como o saxofone em suas mãos. Por isso, esse músico-poeta iria perder com freqüência o seu instrumento, o escritor imagina solitário em seu apartamento. O que o levaria a estar constantemente atrás da coisa perdida: o seu meio de expressão artística, a sua forma, a sua linguagem.

Na rua escura, podia-se ouvir o som insistente da máquina de escrever saindo pela janela, martelando a noite, acordando vizinhos, misturando-se ao sopro improvisado do sax vindo do bar da esquina. Embalado pela música que sai de seu instrumento, o escritor desenha o seu personagem. O músico-poeta, com o saxofone perdido, o corpo e o pensamento esgotados, dirá frases como: “Pensava que as coisas boas… eram como ratoeiras… armadilhas para que a gente se conforme”. E isso inclui tudo que nos estabelece maravilhosamente bem em um lugar e não nos dá vontade de sair dele. Radicalmente tudo, como ser marido, pai e empregado; como ter saúde, público e dinheiro; como ter o mesmo instrumento nas mãos e por isso achar que conhece o coitado de cabo a rabo, como só tocar canções bonitas, que é o mesmo que temer descobrir a beleza nas feias, que é como se olhar no espelho e reconhecer sem a menor sombra de dúvida, sim, com certeza, este aí sou eu.

Em 1959, o escritor argentino Julio Cortázar escreveu e publicou o conto El perseguidor, no livro Armas secretas. O personagem principal, Johnny, é um saxofonista inspirado livremente na figura e na biografia de Charlie Parker, um dos músicos mais inventivos e originais do jazz. Para Cortázar, “Charlie Parker foi um homem angustiado ao longo da vida. Essa angústia não era provocada apenas por problemas materiais, como a droga, mas por uma coisa que eu, de alguma forma, havia sentido em sua música: o desejo de romper barreiras como se procurasse uma outra coisa, como se quisesse passar para o outro lado”.

Johnny-Charlie era o músico-poeta que levaria essa busca ao extremo. Apontaria o dedo para a própria face, para a sua música, o jazz. O seu saxofone se tornaria a trombeta divina de um anjo do Apocalipse, aquele que anuncia a destruição. Em El perseguidor, Cortázar encontra o tema perfeito para falar sobre a problemática da linguagem artística, questão fundamental em toda a sua obra. “O jazz atende à grande ambição do surrealismo na literatura, quer dizer, a escrita automática, a inspiração total, papel desempenhado no jazz pela improvisação, uma criação que não está submetida a um discurso lógico e preestabelecido, mas nasce sim das profundezas.”

Cortázar aspirava na literatura à liberdade criativa do jazz. “A maneira que pode sair de si mesmo sem deixar nunca de ser jazz”, ele disse, em uma entrevista ao amigo e jornalista Ernesto Gonzáles Bermejo, “como uma árvore que abre seus galhos à direita, à esquerda, para cima, para baixo, permitindo todos os estilos, oferecendo todas as possibilidades, cada qual buscando o seu caminho”. Ernesto González Bermejo conta em seu prefácio que Cortázar escrevia como quem malha em ferro quente, burilava a forma de acordo com o conteúdo, correndo o risco extremo de queimar-se na matéria de sua escrita. Para o escritor argentino, é preciso livrar-se das estruturas estabelecidas, das vértebras do verbo, e permitir que a carne, os músculos e os tecidos da língua encontrem um caminho próprio e inimitável em essência. É o músico-poeta que perde o seu instrumento para recuperá-lo depois, novo, outro e irreconhecível. É o escritor que persegue a palavra como a expressão da existência em um instante único e fugaz — o narrado — que por ser único anula a repetição para o instante seguinte — a próxima narrativa — e exige o novo. Dos contos aos romances, a escrita de Cortázar é uma busca incessante pela renovação.

Claudia Lage

Claudia Lage é escritora. Autora do romance Mundos de Eufrásia, entre outros.

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