O filme Fahrenheit 451, adaptação do romance homônimo de Ray Bradbury, dirigido por François Truffaut em 1966, conta a história mais assustadora do mundo, segundo um grande amigo meu, professor de literatura. O filme, sempre presente em sua cabeceira cinematográfica, como uma aterrorizante lembrança de como o mundo pode ser, se passa em um futuro longínquo e hipotético, no qual a sociedade vive sob um regime totalitário, que proíbe a existência de livros e qualquer forma de escrita. A justificativa para tal ato ditador é horrivelmente cínica, diz meu amigo: os livros tornam as pessoas infelizes, passivas e improdutivas.
Já ouvi isso em algum lugar, digo a ele, e não em um futuro longínquo, mas num presente bem próximo. A idéia de que ler envolve passividade, por se estar parado fisicamente, sentado ou deitado, enquanto se lê um livro. A idéia de que ler entristece, por entrarmos em contato com experiências, muitas vezes dramáticas, outras vezes trágicas, de outras pessoas, mundos alheios ao nosso, que nada têm a ver com a nossa vida. A idéia de que ler é improdutivo, porque, ao menos, imediatamente, não leva ninguém a nada. Você não ganha dinheiro quando lê um livro, não fica mais bonito nem mais magro, não sobe na vida, não paga o almoço, não garante o jantar, não conquista ninguém, não é convidado para nenhuma festa, não faz amizades, não recebe privilégios nem cortesias. “Quantas vezes, durante a faculdade de Letras, eu estava lendo”, conta meu amigo professor, “e vinha alguém de casa me chamar: vai lá ao mercado comprar um frango pro almoço”. Essas são duras recordações para alguém apaixonado pela leitura. “Meu irmão, que consertava a bicicleta, não era chamado. Meu pai, que engraxava os sapatos, não podia ser interrompido. Minha irmã, que penteava os cabelos, vendo tevê, muito menos.” E meu amigo sofria sinceramente ao lembrar. “Só eu era chamado. Eu, que estava lendo, era visto como o único que não estava fazendo nada.”
Em Fahrenheit 451, a caça aos livros é implacável. Bombeiros eram convocados quando encontravam uma casa com estantes ocupadas. Acionados como se fosse para apagar um incêndio, eles invadiam a casa e faziam o oposto: queimavam os livros. Em vez da água, o fogo. Montag, o protagonista do filme, é um desses bombeiros, mas ele age ao inverso da ordem: em vez de queimar os livros, começa a lê-los. A leitura se inicia mais por curiosidade do que por gosto. Montag quer descobrir o que há nos livros para serem alvo de tanto ódio e violência. O argumento de tornar as pessoas infelizes, passivas e improdutivas parece pouco, tão pouco, para uma sociedade que cria remédios, conflitos e produtos com efeitos semelhantes e piores, sem por isso censurá-los ou aboli-los. Montag logo descobre: ele não se torna infeliz com os livros. Pelo contrário, se diverte, e até mesmo os dramas e as tragédias o conduzem a um lugar bom e elevado em sua mente. Ao ver o mundo com os olhos de outras pessoas — os personagens —, uma amplitude de perspectivas e compreensão começa a nascer em seu espírito. Montag também não se torna passivo, já que perguntas até então nunca feitas brotam em sua mente. Principalmente relacionadas ao sistema e crenças em que vive, antes aceitas sem questionamentos. Muito menos se torna improdutivo, porque na verdade o mundo de repente lhe parece maior, mais vivo, com possibilidades de realizações infinitas, mais interessantes e frutíferas do que a daquela realidade que lhe haviam imposto diariamente: a de caçar e queimar livros.
Meu amigo professor não vive hoje em uma sociedade que proíbe a leitura, nem que queima livros. Fogueiras literárias já aconteceram, no entanto, diz a nossa memória universal. A Inquisição, na Idade Média, destruiu livros com a justificativa de que eram de feitiçaria. No século 20, o nazismo incendiou livros que considerava perigosos ao regime. No Brasil, o decreto AI-5 legitimou a censura contra obras de arte, inclusive livros. Meu amigo mantém, como uma chama acesa, o filme Fahrenheit 451 em sua cabeceira por uma questão mais espiritual do que ideológica. “Quando entro na sala de aula com um livro, sabendo que o foco da disciplina não é a leitura, mas as questões a serem levantadas e respondidas e corrigidas a partir dela, e, por conseqüência, a nota”, diz o professor, “eu penso nesse filme”. “Quando vejo meus alunos falando animados sobre um reality show qualquer, exaltados com as intrigas e mesquinharias que se passam no programa, satisfeitos com o mísero e ilusório poder que recebem de decidir quem é o mocinho e quem é o bandido, quem fica e quem sai”, continuou meu amigo, “eu penso nesse filme”. “Quando vejo pessoas tendo atitudes abusivas, ou racistas, sexistas e preconceituosas de todos os modos, repetindo cega e automaticamente padrões antigos de desumanidade e autoritarismo”, concluiu meu amigo professor, “eu penso nesse filme”.
Em Fahrenheit 451, a esposa de Montag percebe a mudança de comportamento do marido, e, a serviço do sistema totalitário, o denuncia. Antes, porém, Montag foge, se refugiando em uma comunidade chamada A terra dos homens-livro, onde os habitantes, foragidos e vivendo clandestinamente, memorizavam a maior quantidade de livros que podiam, antes de serem destruídos. Decoravam cada frase na esperança de reescreverem e republicarem os livros, quando o regime totalitário um dia enfim terminasse. Decoravam cada frase na esperança de manter a existência de cada volume, por mais que a sua materialidade estivesse destruída. “Fahrenheit 451 é a temperatura que o papel alcança quando entra em combustão”, diz o meu amigo. “Temperatura que temo sentir próxima, mesmo que metaforicamente”, continua. E conta que, em uma triste e bela passagem do filme, uma mulher se recusa a abandonar seus livros, e é incendiada junto com a sua biblioteca. “Mas nós precisamos sobreviver”, retruca o meu amigo professor de literatura, “para manter a chama acesa”. Como os homens-livros com a memorização, como o filme em sua cabeceira.