Entre ruínas e livros

Os livros trancafiados na cadeia, cuja chave desapareceu, e outras tristezas que podem acontecer com bibliotecas
01/07/2009

Entre escombros, vigas partidas, telhas quebradas, papéis e brochuras espalhados, três homens estão diante das estantes sobreviventes do grande bombardeio do dia anterior. Com seus sobretudos e chapéus, procuram alguns livros, folheiam outros, transitam concentrados nas lombadas escurecidas pelas nuvens de fumaça, quase esquecidos das pernas, que são obrigadas a se erguerem e abaixarem a todo o momento, desviando de obstáculos inacreditáveis; dos pés, que buscam desolados a cada passo a conhecida superfície lisa dos tacos de madeira — agora totalmente destruída — a silenciosa suavidade da sola dos sapatos no chão — agora, um descompasso de ruídos — a tranqüila trajetória entre uma estante e outra — agora, montanhas de ruínas.

“Muitas bibliotecas foram destruídas nas guerras”, disse o meu amigo fotógrafo, que havia me mostrado exatamente aquela imagem. A biblioteca era em Londres. A foto, de 1940. “Já os três homens são atemporais”, ele disse, com uma certeza que me espantou. “Sim, em cada canto do mundo você encontrará alguém que fará o mesmo, independentemente das circunstâncias: voltará para os livros.”

Na intenção de provar a sua teoria, ele me mostrou outra imagem: atrás de uma grande janela gradeada, pilhas e pilhas de livros abandonados. “Nessa cidade, a biblioteca pública foi desativada, e o acerco, trancafiado em uma das celas da cadeia.” Olhei novamente a imagem, sem acreditar. Numa cidade do interior sem biblioteca, e numa cadeia sem bandidos, restou então aos livros serem presos. Depois que tirou a foto, meu amigo contou que conheceu um bibliotecário que passava férias na casa da sua família, que ficava bem próxima. Como não se pode ter uma profissão sem ser contaminado por ela, o bibliotecário tentou de todas as formas libertar os livros, e o fotógrafo registrou de todos os modos com a sua câmera as tentativas. “Alguém trancou a cadeia”, o bibliotecário disse mais tarde, completamente desolado, após ter falado com todas as autoridades encontradas, “e ninguém sabe onde está a chave”.

Era notável, mas parecia que o impossível era a realidade mais simples naquela pequena cidade. Com a biblioteca desativada por algum motivo, talvez, a falta de funcionários — que nos levava a crer que era impossível a existência de concursos —, a cadeia, vazia — porque deve ser impossível de algum modo também delegados e bandidos —, tornou-se depósito de livros; e, um belo dia, alguém a fechou e sumiu com a chave — o que nos leva a crer que é impossível para aquela cidade também chaveiros.

O meu amigo fotógrafo contou que o bibliotecário não conseguiu de jeito nenhum libertar os livros, mas decidiu revoltado fazer, ele mesmo, uma biblioteca. A sede começou na garagem da casa da sua família e hoje toma toda a casa (sim, a família se mudou). Nessa biblioteca, não é preciso se registrar para pegar um livro. “É importante que ele volte (e sempre volta), mas o mais importante é que circule”, disse o bibliotecário.

Fazendo uma viagem no tempo, meu amigo disse que o mesmo pensamento rondava certo bibliotecário na Idade Média. Antonio Panizzi vivia inconformado com fato de que poucas pessoas tinham acesso à maioria dos livros guardados nas bibliotecas públicas. Na época, não havia registros dos livros, e, por isso, apenas os eruditos os conheciam. Apesar das críticas e da incredulidade, Panizzi assumiu sozinho a árdua tarefa de catalogar volume por volume, levando sete longos anos para concluir somente os registros da letra A. No entanto, assim que a lista dos livros ficou disponível, as consultas aumentaram espantosamente, e o que era visto como loucura se tornou o primeiro modelo de catalogação de títulos publicados. Como o bibliotecário da nossa cidade sem bandidos nem chaveiros, Panizzi queria apenas que os livros circulassem.

Independentemente das circunstâncias, sempre há alguém que volta para os livros, era a teoria do meu amigo, desdobrada em tantas situações. Em 2003, após dois ataques de bombas e mísseis, a Biblioteca Nacional do Iraque foi completamente saqueada, o seu acervo, destruído. Um jovem estudante de história, inconformado, retornava todos os dias aos destroços da biblioteca que costumava ir com freqüência. Buscava entre as ruínas vestígios de páginas, encadernações, na profunda esperança de recuperar algum exemplar. “Por que destroem livros?”, lamentou, sem que ninguém o ouvisse, “são a nossa memória”. No século 15, uma guerra civil no Japão destruiu todas as bibliotecas de Kyoto. Na Guerra de Secessão dos Estados Unidos, muitos livros foram queimados. Quando invadiu o Canadá, em 1813, o exército americano queimou a Biblioteca Legislativa. Como vingança, os ingleses queimaram a Biblioteca do Congresso Americano. Em 1980, na ditadura Argentina, um milhão e meio de volumes foram queimados em um terreno baldio. Durante a Guerra Civil Espanhola, a Biblioteca Nacional, em Madri, foi implacavelmente bombardeada. Em uma junção de esforços heróicos, centenas de livros e manuscritos foram resgatados pelos bibliotecários.

No Maranhão deste Brasil, um dia, um jegue foi retirado da lavoura, enfeitado com fitas e papéis coloridos, amarrado com cestas de um lado e de outro, recebendo uma missão muito especial: de carregar livros até as cidadezinhas mais afastadas, de levar à leitura ao interior do interior, onde nem mesmo há bibliotecas para serem desativadas e livros para serem trancafiados na cadeia. Na Amazônia, três mulheres atravessam o rio numa embarcação chamada Vagalume, distribuindo livros por onde passam. “A Amazônia humana precisa ser cuidada”, disse uma das fundadoras do projeto, “assim como a fauna e a flora”. A repercussão foi tanta que as pessoas vão para a beira do rio, à espera dos livros, com as mãos estendidas.

“Para cada livro destruído, abandonado, esquecido, há um, em algum lugar, redescoberto, lembrado, distribuído”, sentenciou o meu amigo fotógrafo, “independentemente das circunstâncias”, afirmou, e eu acreditei. Quis acreditar. A imagem da biblioteca londrina em minha mente. O teto havia caído, as paredes, desabado, o chão havia se tornado montanhas de entulhos, mas as estantes continuavam erguidas, e os livros de pé na prateleira. Talvez, por isso, aqueles três homens, ao virem as estantes e os livros, raros sobreviventes, como eles, do caos humano, acreditaram que, mesmo entre ruínas e com o mundo explodindo ao redor, estavam numa biblioteca.

Claudia Lage

Claudia Lage é escritora. Autora do romance Mundos de Eufrásia, entre outros.

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