De Ulisses a Ulisses – (Canto I)

Quando o mundo a percorrer se transforma em infinitos universos
01/11/2010

“Nos tempos inglórios de hoje”, me disse uma vez uma professora de literatura, “me refugio nos grandes clássicos”. “Quais?”, eu quis logo saber, pensando que ela citaria os grandes romances do século 19, a sua leitura preferida, ou Shakespeare, Goethe, ou até Lusíadas, de Camões. Mas a professora se referia a clássicos de tempos mais remotos: Odisséia, Ilíada, as epopéias de Homero. “O que me encanta são os seus personagens, que não fogem à luta.” Realmente, tanto Aquiles, na Ilíada, como Ulisses, na Odisséia, enveredam em viagens perigosas, enfrentam terríveis monstros, tempestades, inimigos deste e de outros mundos em nome de belos ideais como Verdade, Justiça, Amor e Amizade. “São personagens construídos com a função de serem maiores do que eles mesmos”, disse a professora. “Quer dizer que a individualidade de Ulisses, assim como de outros personagens épicos, ficava de fora?”, perguntei, pensando na dedicação e lealdade inabalável de Ulisses diante dos obstáculos em seu regresso da Guerra de Tróia. “Sim”, foi a resposta, “eles existem para o cumprimento de uma nobre missão”. De forma similar, lembra, são os heróis dos romances de cavalaria, surgidos na Idade Média. Cavaleiros dispostos a todos os sacrifícios em nome da honra, do amor e da justiça. Enquanto a professora falava, eu pensava na visão de mundo proposta pela narrativa épica. Uma visão totalizante, essencial, impossível de ser fracionada, fragmentada, relativizada. Algo só possível quando a subjetividade entra em cena. Afinal, não é ela, com seu olhar caleidoscópico, que relativiza tudo?

“A subjetividade, entendida desse modo na criação do personagem, só aparece séculos depois, mas ainda não na prosa, na dramaturgia”, a professora de literatura pondera, “Como herói de ficção, Hamlet é o nosso primeiro herói moderno”. To be or not to be, a célebre frase, rompe com a totalidade épica bruscamente. O herói de Shakespeare não tem mais a certeza inabalável dos heróis épicos em relação a sua missão. No caso de Hamlet, vingar o assassinato de seu pai. Apesar de almejar cumprir a vingança, Hamlet hesita. Em suas mãos, se rompe a lança firme e implacável que Ulisses de Homero carregava, cuja convicção de espírito e de caráter se estendeu aos cavaleiros medievais.

Ao pensar nos romances de cavalaria, a professora cita o livro publicado no século 17 que se tornou a sátira e a desconstrução de todos eles. “Encheu-se lhe a fantasia de tudo aquilo que lia nos livros”, está nas primeiras páginas de D. Quixote, considerado o precursor do romance moderno, “tanto de encantamentos como de pelejas, duelos, ferimentos, galanteios, amores, desgraças e disparates impossíveis”. Para ela, o herói de Miguel de Cervantes traz definitivamente à tona o personagem como indivíduo, e não como representação de um ideal. “E assentou-lhe de tal modo na imaginação que era verdade toda aquela máquina daquelas sonhadas invenções que lia, que para ele não havia outra história mais certa no mundo.” Embriagado pelas histórias de cavalaria, Dom Quixote sai pelo mundo, julgando-se e comportando-se como um autêntico cavaleiro. Para ele, os seus sonhos é que são a realidade, e esta, um mundo repleto de inimigos e demônios, sempre a contestar a sua verdade. “Está inaugurada então a ficção narrada a partir da vida interior de um personagem, que não possui mais diante de si uma visão totalizante do mundo”, diz a professora de literatura, “mas uma visão ditada por sua subjetividade”.

O escritor Milan Kundera disse em uma entrevista que “todos os romances se voltam para o enigma do eu”. E foi Cervantes quem iniciou, também falou Kundera, a exploração desse ser desconhecido na figura de Dom Quixote, trazendo a complexidade da existência para o foco da questão narrativa. “Compreender com Cervantes o mundo como ambigüidade é ter de enfrentar, em vez de uma verdade absoluta, verdades relativas que se contradizem. Ter portanto como única certeza a sabedoria da incerteza, e isso não exige menos força”, considerou o escritor checo, naturalizado francês, em seu belo livro de ensaios A arte do romance.

“As certezas se rompem mais ainda”, diz a professora, “quando Flaubert retira de cena o narrador — com a sua presença organizadora dos acontecimentos — trazendo para o primeiro plano aquilo que é narrado”. Realmente, em Madame Bovary, o leitor não necessita mais de um intermediário para conhecer os personagens. É apresentado diretamente a ele. Mesmo com a narrativa na terceira pessoa, o leitor se aproxima dos sentimentos e pensamentos de Emma, “Talvez ela tivesse sonhado em fazer a alguém a confidência de todas essas coisas. Mas como relatar uma angústia indizível, que muda de aspecto como as nuvens, que roda em turbilhão como o vento?”. Quando o leitor passa a conhecer a história contada a partir da subjetividade do personagem, e apenas desse filtro, o discurso se relativiza e se fragmenta inevitavelmente. “Se Charles tivesse percebido, se seu olhar, uma só vez que fosse, tivesse ido ao encontro de seus pensamentos, ela acreditava que uma abundância súbita se desprenderia de seu coração, como caem os frutos maduros das árvores, quando se lhes encosta a mão.”

Lendo o belo trecho de Madame Bovary, é impossível não mergulhar em seus sentimentos. “É a ausência do ponto de vista do narrador, que inevitavelmente provoca essa aproximação”, esclareceu a professora, “Os eventos deixam de ser narrados e passam a ser refletidos na consciência da personagem”. Consciência que a narrativa expõe, oferecendo ao leitor uma fatia de mundo desconhecida, mas, que, simultaneamente, reflete e toca em sua própria experiência. “O espírito do romance é o espírito da complexidade”, a professora retorna com as palavras de Kundera, “Cada romance diz ao leitor: as coisas são mais complicadas do que você pensa”. Sim, não existe mais o mundo a percorrer, mas infinitos universos.

Claudia Lage

Claudia Lage é escritora. Autora do romance Mundos de Eufrásia, entre outros.

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