“Quando termino de escrever um livro sofro uma espécie de morte”, disse uma vez o escritor americano Ernest Hemingway. “Demora para a vida, com todo o seu esplendor, ressurgir diante de meus olhos.” Ele continua: “É um vazio imenso, só comparável ao que sinto quando começo a escrever outro”. “Essa experiência é a mais solitária de todas, porque só você está lá, diante da página em branco, e só você pode preenchê-la.” A escritora Marguerite Duras não pensava muito diferente: “começar um livro novo é se defrontar com o deserto”. Para ela, sentar-se diante da primeira página em branco era uma emoção incomparável. “Alguns escritores falam da angústia da página em branco. Mas, na minha opinião, a única, verdadeira e maior angústia, e o maior fascínio também, é a primeira página, e apenas ela, a semente, o início de tudo.” Segundo a escritora, é nesta primeira página que o livro inteiro se revela, sem ainda estar pronto, se, aliás, um dia estará. “É o encontro do autor com a alma, não com o corpo do livro. O corpo vem depois, nas páginas seguintes.”
“Sento e levanto mil vezes”, disse o escritor Italo Calvino, numa entrevista, “mergulho numa ansiedade imensa ao iniciar um livro”. A imagem é cômica, como são muitas vezes os livros de Calvino: o escritor se senta diante da página em branco, pronto para escrever, disposto a ordenar em frases e parágrafos os personagens e situações que surgem em sua mente, para minutos depois se levantar, inquieto com o vendaval de idéias e informações. Um turbilhão de vozes e imagens que o fazem andar pela casa, esbarrar em cadeiras, arrumar envelopes, abrir e fechar livros, para em seguida voltar ansioso à mesa e à página que o espera. Ritual que se repete incessantemente durante o dia, até as primeiras palavras assentarem enfim no papel.
“Há algo fascinante e aterrador na primeira página a ser escrita”, Calvino revelou, “algo que está entre o mundo imaterial, a imaginação, e o material, a palavra”. Por isso, provavelmente, a ansiedade, a angústia e a excitação diante da página em branco, especialmente a primeira. “Consciente ou inconscientemente, todo artista, e, no meu caso, todo escritor sabe que sua tarefa é extrema”, disse uma vez o tcheco Milan Kundera, “tornar o universo vivo apenas em sua mente visível a todos. E, para isso, o autor possui como ferramenta e material apenas uma coisa: as palavras”.
Escritores de outros séculos também se defrontaram com a página em branco. “Iniciar um livro é como preencher cuidadosamente um palco vazio”, escreveu Gustave Flaubert em suas cartas a amigos, como Baudelaire, Victor Hugo e Maupassant, no qual refletia corajosamente sobre o processo criativo. “Cada palavra é um objeto posto em cena, cada personagem é um ator que se coloca à beira do palco.” A força dessa imagem é bastante clara: depois que se entra em cena, não há mais retorno possível. É preciso estar lá até o último fio de existência. E ser, e dizer, e sentir. E fundar assim um novo universo, uma nova realidade. Impressionado com a veemência e veracidade das cartas do amigo, Victor Hugo, o autor do célebre romance Os miseráveis, respondeu-lhe: “É exatamente assim que vejo o início dessa alegria e tortura que é a escrita de um novo romance. Alegria, porque enfim descarregamos no papel o nosso anseio criativo. Tortura, porque nunca sabemos como esse descarrego, essa terra recém-criada e ainda tão crua de habitantes, será para nós”.
“A cada livro que escrevo cresce em mim a certeza”, retrucou Flaubert, “de que é justamente essa tortura, de não saber o que virá adiante, nas próximas páginas, ou até mesmo nas próximas linhas, que mantém a vitalidade e o frescor da escrita”. Para o escritor francês, está nas primeiras páginas, especialmente na primeira, aquela que o autor escreve tateando entre sustos e descobertas, o espírito genuíno do romance. “Sou eu que escrevo, mas, apesar disso, sou eu que parto em busca da realidade inventada por mim mesmo, e não ao contrário”, confessou. “Sempre volto às primeiras páginas quando fico sem inspiração, ou quando começo a me repetir.” E concluiu ao amigo: “É a realidade que criamos, e pensamos que dominamos, que, na verdade, nos domina”. Como exemplo, cita a passagem do envenenamento de Madame Bovary: “Enquanto eu a escrevia, tinha nitidamente o gosto do arsênio em minha boca”.
Mais próximo dos trópicos, um escritor contemporâneo afirmou: “Quando passo da primeira página, tenho a certeza de que não sobreviverei às outras, porque sei de antemão o trabalho exaustivo que será, diariamente, tirar água de pedra, tornar concreto e palpável o que não passa da ilusão mais pura. Mas, ainda assim, persistirei e levarei a cada página os sustos e riscos da primeira, vou chorar e rir a cada descoberta, e cada nascimento e morte nesse livro será uma parte de mim que vive e morre também, como se eu nada soubesse de antemão sobre a história e a vida daquelas pessoas, como se cada momento fosse desconhecido e novo, e exigisse de mim também o desconhecimento e a novidade”. Como Flaubert, que sabia antecipadamente do envenenamento de sua personagem, mas nunca poderia imaginar, que, ao começar a escrevê-lo, sentiria nos lábios o sabor do veneno.