Quando eu era menina, todos os sábados era assim: de manhã, minha mãe nos levava, eu e minha irmã, para passear. E o passeio incluía, sempre, uma ida à livraria. Nós íamos com uma missão especial, era, na verdade, um presente: entre todos os livros nas prateleiras e estantes, para crianças, adultos, jovens; de comédia, drama, romance, e tudo o mais, nós podíamos escolher um livro — qualquer um — para levar para casa.
Como a menina do conto Felicidade clandestina, da nossa Clarice Lispector, que exultou ao poder ficar com um livro emprestado pelo tempo que quisesse (“O tempo que eu quisesse! É tudo que uma pessoa, grande ou pequena, pode querer”, Clarice escreveu), eu também exultava ao poder levar para casa o livro que eu quisesse. E se a menina da Clarice fez seu ritual ao chegar em casa com o livro (“Fingia que não tinha o livro, só para depois ter o susto de o ter”), eu fazia, a cada sábado, o meu próprio ritual. Para mim, que descobria a leitura como uma possibilidade de emoções surpreendentes, de aventuras extraordinárias ao alcance das mãos e dos olhos, escolher apenas um livro num mar de estantes era tarefa árdua e muito preciosa.
Como era menina e não conhecia autores, não lia resenhas, não tinha conhecimento dos premiados do ano, da lista dos mais vendidos e nem do que a crítica especializada apontava como referência da literatura clássica e contemporânea, eu seguia instintivamente pelas capas e lombadas, na expectativa febril de encontrar em breve o meu livro. Inicialmente, percorria com os dedos os volumes, numa busca tátil e premonitória de sensações. Aquela história seria alegre, triste? Me faria chorar, como eu gostava na época?, sabe-se lá por que uma menina risonha precisava debulhar-se de vez em quando sobre uma tragédia social, um drama familiar ou um amor impossível. Ou me faria ter ímpetos de desbravador e explorador das matas e terras desconhecidas deste e do outro lado do mundo? Eu não sabia. E não saber fazia parte da descoberta. Às vezes um título me atraía, e me fazia segurar aquele livro com mais força. Os dedos em passagem se tornavam mãos firmes sobre o volume. Eu o abria e lia algumas frases. Muitas vezes, era nesse momento que minha escolha se definia. Uma frase ou duas bastavam para me lançar no universo do livro, ou para me tirar completamente dele. Em dias de mais ousadia, ia direto para a última página. Até hoje, não sei por que, o último parágrafo de um livro é um mistério para mim. Ali está, pressinto, o fôlego suspenso do autor ao escrever a última frase, a sombra de tudo o que se disse e de tudo o que aconteceu, últimos vestígios deixados ao leitor.
Ainda hoje, ao entrar numa livraria, lembro dessa menina entre as estantes, intrigada com livros e com o que se ameaçava dentro deles. Através das atentas mãos de minha mãe, a literatura presente tão cedo em minha vida. Mas não foi preciso crescer muito e nem conhecer o outro lado da leitura, a escrita, para enxergar as estantes e prateleiras de outro modo. Quando já estava crescida o suficiente para ter um amigo escritor, com livro publicado por uma editora bacana, com lançamento divulgado na imprensa, com resenha feita nos principais jornais e tudo, entrei numa livraria com a missão de comprar o livro para dar de presente a uma amiga. A cara de paisagem do livreiro ao ouvir o título não me desanimou. Passeei entre as estantes, em busca do livro. Os meus dedos pousaram sobre as lombadas, na maioria, estrangeiras, títulos conhecidos das listas dos mais vendidos. Percorri as prateleiras e estantes ao redor, ainda com esperanças: alguns consagrados nomes nacionais despontavam nas capas. Embora poucos, não quis desanimar. O livreiro, no entanto, foi categórico: ali não encontraria o livro que queria. E me apontou outras estantes, mas para o fundo da loja. Se tivesse algum exemplar, estaria lá.
Lá, advérbio que aponta para longe, estabelece distâncias. Olhei para o canto mal iluminado e quase deserto da livraria. Caminhei lentamente na sua direção, enquanto as pilhas de livros ao meu redor se transformavam em barricadas, as estantes erguiam implacáveis fronteiras, as prateleiras marcavam territórios inalcançáveis. Examinei a estante, constatando desolada que, não apenas o livro do meu amigo, mas muitos dos títulos nacionais lançados recentemente estavam ali. Fora do percurso habitual dos visitantes da livraria. Assim como os cadernos de cultura pouco falam sobre livros nacionais, as estantes das livrarias pouco os mostram ao leitor. Assim como é preciso caçar o suplemento literário entre tantos outros, tarefa quase impossível para quem não é do meio literário, é preciso ser desbravador, um verdadeiro explorador, para encontrar títulos nacionais contemporâneos nas livrarias.
Mas enfim comprei o livro e presenteei a minha amiga. Não comentei que ela é uma leitora incansável, cumpridora do circuito dos best-sellers, das grandes coleções e das exuberantes prateleiras. Mas, é importante dizer, com um senso crítico vivo, minha amiga não se deixa iludir facilmente. Entre os lidos, nem sempre os estrangeiros mais vendidos são seus prediletos. “O que te atrai num livro?”, lhe perguntei certa vez. “A história”, foi a primeira resposta, “o jeito de contá-la, a linguagem do autor”, foi a segunda. Cheia de esperanças, tirei o livro do meu amigo escritor do fundo da livraria e lhe entreguei. Duas semanas depois, o resultado: não só ela havia adorado o livro, como estava procurando em vão nas livrarias outro exemplar para dar de presente. Foi preciso recorrer ao mundo virtual para consegui-lo. “Por que foi tão difícil encontrar esse livro?”, me perguntou, incrédula. O autor morava no mesmo estado, a editora, no mesmo país, e nunca havia ocorrido, entre ela e um livro, tanta distância. Pensei na menina entre as estantes. Na sua idade, as estantes e prateleiras eram apenas universos a serem desvendados e conhecidos. Ela não sabia que, ao vasculhar toda a livraria, ultrapassava barricadas e fronteiras, derrubava estantes e hierarquias, desconstruía territórios políticos estabelecidos, decifrava labirintos, movida unicamente pelo sentimento da leitura.