Mas eu lhe digo, meu tolo senhor, dessa urtiga,
o perigo, colhemos esta flor, a salvação.
(Trecho de Henrique IV, de Shakespeare, que Katherine Mansfield fez de epígrafe em Bliss, e, posteriormente, seu epitáfio.)
Em seu sonho, ela voltava à Nova Zelândia, sua terra natal, com a respiração leve e perfeita de sua infância, e assistia ao delicado espetáculo do sol derretendo a neve. Ao acordar, escreveu detalhadamente o que havia sonhado em seu diário, cada pequeno acontecimento, o seu olhar de menina sobre as montanhas de gelo, partículas brancas tornando-se líquidas nas palmas quentes das mãos. Enquanto escrevia, tentava ignorar a tosse contínua, a opressão no peito e as fagulhas nos pulmões, que ardiam lancinantes como se pegassem fogo.
“Tuberculose”, o médico havia dito em 1917 e, desde então, passaram-se quatro anos. “Tuberculose”, o seu corpo lhe dizia todas as manhãs, quando despertava com a esperança de a doença ser apenas um pesadelo. “Tuberculose”, repetia, quando teimava com a fraqueza das pernas e exigia a vitalidade impossível dos seus trinta e três anos. Mas era inútil discutir com o corpo, ela já havia aprendido, ele é a prova única de nossa realidade. Por isso precisava se levantar, mesmo que dolorosamente, e sentar-se na dura cadeira de madeira, diante da mesa em que trabalhava, coberta com uma toalha florida para que houvesse sempre a lembrança de flores e jardins apesar do inverno mais frio, e por isso colocava ao alcance das mãos um bule de chá sempre quente, para que nunca morresse a esperança de que poderia se aquecer, e também por isso, enfim, havia sempre uma pilha de papel ao cair dos olhos e uma caneta próxima dos dedos. “Sem uma caneta, me sinto tão afastada do mundo”, escrevera uma vez em seu diário em 1918. Naquela manhã, desejou que não fosse o seu corpo a prova única de sua realidade, mas aquele mundo que se materializava através da sua caneta.
Depois do diário, voltou-se para o conto que vinha escrevendo incessantemente nas últimas semanas. Escrevia-o desde as primeiras horas da manhã até o fim da noite, exigindo de seu corpo uma compensação, de sua doença, uma trégua. Sabia que não havia tempo a perder. Se as palavras eram canções em sua cabeça, sempre lidas e escritas em voz alta, o tempo era uma música que se esgotava entre os seus dedos. Ela temia cada vez mais o silêncio. Escrevia ininterruptamente com medo de encontrar o vazio ao pousar a caneta.
As filhas do falecido coronel, texto de Katherine Mansfield considerado uma obra-prima do conto moderno, foi escrito em circunstâncias difíceis. Muito debilitada pela doença que a assombrava havia quatro anos, a escritora sentia que a morte poderia chegar antes de terminar a história das duas irmãs solteironas que perdiam a perspectiva de suas vidas com a morte do pai. Duas irmãs de idade avançada, que se relacionavam uma com a outra e com o mundo como duas mocinhas, despreparadas para tudo e para cada coisa, do supérfluo ao essencial.
Afugentar a morte
“Estar viva e ser escritora é o bastante”, Katherine escrevera uma vez em seu diário, em 1917. Mas, naquela manhã, sabia que estava longe do que lhe bastava. “Ao menos, a escrita”, pensava debruçada sobre Josephine e Constantia, suas personagens. “Ao menos, isso”, escrevia, afugentando a morte com as palavras, comprovando a cada nova página que continuava viva. Escrevia furiosamente, para que o corpo não desistisse no meio do caminho. “Escrevo o mais rápido que posso, com medo de morrer antes de terminar”, pôs em seu diário. Durante semanas, entregou-se ao trabalho, aguçando ainda mais a sua literatura, afinando-a com a sua visão de mundo. Enquanto a morte, o imenso monstro, se aproximava, Katherine se voltava para o que havia de menor. “São as fagulhas contidas no cotidiano que me interessam”, disse por carta a uma amiga, “quando o relâmpago de toda uma existência rompe repentinamente a esfera do trivial”.
Em As filhas do falecido coronel, Josephine e Constantia receberam, quando o pai ainda estava vivo, meio surdo e martelando constantemente com a bengala no chão, a visita rara do sobrinho Cryil, que morava longe. Ao levarem o rapaz para falar com o avô, queriam que ele lhe contasse algo que havia dito antes casualmente: que o seu pai ainda gostava de merengues. Com o velho surdo, a repetição incessante da frase “papai ainda gosta de merengues” em voz cada vez mais alta causou verdadeiro mal-estar em Cryil, apesar do deleite insistente das tias de verem o avô e o neto juntos. Quando finalmente a mensagem foi entendida, o velho coronel não titubeou, “que coisa extraordinária vir de tão longe para me dizer isso!”.
A escrita de Katherine Mansfield era capaz de virar ao avesso pequenos acontecimentos, numa simplicidade enganosa. Ela preferia sempre explorar instantes da existência, em vez de tramas romanescas. Como a passagem dos merengues, que foi escrita tarde da noite. Exausta de um dia inteiro de trabalho, Katherine se arrumou para dormir, incapaz de dar mais um passo. No corredor a caminho do quarto, porém, vislumbrou Josephine, Constantia e o pobre sobrinho diante do velho coronel. As bengaladas no chão, a patética repetição “papai ainda gosta de merengues” a fez parar e rir sozinha em sua casa no silêncio escuro da noite. Sabia que não poderia dormir sem pôr aquela visão no papel, mas o seu corpo não tinha mais posição para sentar-se na dura cadeira, e nem agüentaria voltar para o escritório. O cansaço e a dor nos pulmões faziam de mínimas distâncias quilômetros. Ainda rindo, teve que parar ali mesmo no corredor, sentar-se na escada e deixar a sua mente conjecturar toda a cena, até sabê-la de cor. Depois, deitada em sua cama, escreveu toda a passagem com uma satisfação imensa.
“Mas a indizível emoção dessa atividade artística — com que se pode compará-la? E o que mais se pode desejar?”, escreveu na manhã seguinte em seu diário. “Para mim, não é só o caso de deixar a lareira acesa. É mais. É baixar a chama até que ela fique pequena, mas sem perder o fulgor.”