Eu relanço para o Deus que me fez
Essa alma como um incêndio
Que o cure de criar
Antonin Artaud
Um homem sobe em um pequeno estrado, para apresentar uma conferência. “O teatro e a peste”, ele diz, mergulhando em seguida em profundo silêncio. A platéia aguarda as próximas palavras, que demoram. “Quero lembrá-los”, fala, enfim, “que os dias de peste trouxeram à luz um grande número de maravilhosas obras de arte, peças de teatro e livros fantásticos”. Há outra pausa profunda, quebrada com um tom de voz soturno e intenso. Imóvel sobre o estrado, o homem afirma que o ser humano, chicoteado pelo medo e pela morte, procura a imortalidade, a evasão, tenta ultrapassar-se. “É difícil quando tudo nos leva a dormir, a fechar os olhos sem saber mais para que servem”, o homem diz, “a peste nos tira do sonho e pesadelo em que vivemos, ela nos acorda”.
E, sem nenhum aviso ou transição, os olhos do homem se dilatam, os músculos enrijecem, os dedos tremem, as pernas entortam, o corpo perde o eixo e luta por equilíbrio. A platéia observa, estática. A primeira reação é de imensa perplexidade. Cada um, em sua mente, tenta recuperar o momento em que o homem se calou e começou a se contorcer. Ninguém consegue, no entanto, resgatar esse instante em que a intensidade soturna da voz passou para o corpo.
Na platéia, a escritora Anaïs Nin assistia ao estranho acontecimento, entre curiosa e temerosa. Ela é amiga do homem que se contorce no palco. O ator, dramaturgo, teórico, poeta, mas, sobretudo, artista, Antonin Artaud. Anaïs conhecia o amigo o suficiente para entender que ele abandonara o fluxo do discurso para seguir o da experiência. De repente, Artaud não falava mais sobre a peste, era a própria, ao interpretar um homem morrendo da doença. A platéia, de estática, passou ao riso, aos assovios, às gargalhadas, aos impropérios, e, finalmente, às vaias. Mesmo assim, Artaud continuou com a sua convulsão e delírio, até o último suspiro. As pessoas foram saindo, uma a uma, entre incompreensões e protestos, até que o auditório ficou vazio. Quando o homem no palco morreu, apenas Anaïs Nin restava na platéia. A escritora esperou compassiva que Artaud compreendesse, mesmo de olhos fechados, o inevitável: o enorme silêncio ao seu redor não era o de uma audiência atenta, mas o de cadeiras vazias.
Artaud logo compreendeu, e se levantou indignado. Anaïs Nin viu um homem arrasado, ferido, convidá-la para uma bebida num café próximo. Lá, entre conhaques e cigarros, ele espumava: “Só querem ouvir falar de, querem uma conferência objetiva sobre o teatro e a peste, ao passo que eu quero oferecer-lhes a própria experiência, a própria peste, para ficarem aterrorizados e acordarem. Não compreendem que estão mortos. A sua morte é total, como uma surdez, uma cegueira”. Anaïs compreendia profundamente a angústia do seu amigo, que falava do teatro, da poesia, sempre voltado para a palavra, o seu alvo principal de ataque e revolta. Artaud queria tirá-la de sua supremacia intelectual, dar-lhe expressividade primária, orgânica. “Por vezes sinto que não escrevo”, Artaud desabafou, “que apenas descrevo os esforços de escrever, os esforços de criar”. Por isso, havia escolhido não falar sobre a peste a partir de um texto. Sabia que correria o risco de tirar a sua vitalidade e torná-la apenas uma idéia, inserida em um discurso construído de forma racional. “Por isso, a peste, como você a viu”, disse à amiga Anaïs Nin.
Naquela noite, a escritora francesa não dormiu. Chegou à manhã escrevendo em seu diário as visões de Artaud sobre a palavra no teatro, que, ela sabia, poderiam muito bem ser transportadas para a literatura. “A palavra, como é usada hoje, só serve para expressar conflitos psicológicos do homem e da sua situação na atualidade cotidiana da vida. Seus conflitos são claramente regidos pela linguagem articulada. […] o corpo verbal desarticulado, invertebrado, livre de conexões lógicas e consensuais, pode ir a qualquer lugar, ou a lugar nenhum, desprendido que está no espaço orgânico da linguagem.” Nesse sentido, era necessário e urgente, para Artaud, acabar com o conceito de arte como imitação da vida. “Quero a arte agindo não apenas como reflexo, mas como uma força”, ele disse, no café, antes de se despedirem. “Uma força vital, própria, latejante de expressividade, que não se espelhe em nada, que, pelo contrário, revele a si mesmo.” A palavra, então, como força ativa, que parte da destruição das aparências para chegar até o espírito, Anaïs pôs em seu diário. No dia seguinte, enviou uma carta a Artaud, dizendo que a palavra, ou a linguagem literária, poderia com esforços destruir as aparências, abandonar o discurso lógico e a tentativa de retratar e descrever a vida, tornando-se uma força ativa, como ele havia dito. Mas alcançar plenamente o espírito, dizer a alma do ser humano, talvez fosse impossível. “Talvez o que queremos urgentemente representar ou revelar, através da criação”, ela escreveu, “seja irrepresentável, irrevelável. Talvez não haja, simplesmente, uma linguagem possível de alcançar a verdadeira essência das coisas”.
Naquela mesma semana, Artaud respondeu à amiga, “Todo verdadeiro sentimento é intraduzível”, aceitando que a impossibilidade era inerente à criação, que havia realmente um limite expressivo em toda a linguagem. “A expressão verdadeira oculta aquilo que manifesta”, ele continuou, “Todo sentimento poderoso provoca em nós a idéia do vazio. E a linguagem clara e lógica que impede esse vazio impede também que a expressão poética apareça no pensamento”. Anaïs logo entendeu a mudança no raciocínio: Artaud incorporava a característica da impossibilidade ao ato criativo. Tornando, a própria impossibilidade, uma fonte criativa. “É por isso que uma imagem, uma alegoria, uma figura que mascare o que gostaria de revelar tem mais significado para o espírito do que as clarezas proporcionadas pelas análises das palavras”, ela leu. E, mesmo depois de ter relido inúmeras vezes, nunca se separou daquela carta. Para Anaïs, Artaud não havia escrito apenas uma resposta, mas uma belíssima poesia. “A verdadeira beleza nunca nos atinge diretamente. E é assim que um pôr-do-sol é belo, por tudo aquilo que nos faz perder.”