A ilha de Tcheckov

A experiência do clássico autor russo que o levou a aprofundar a sua visão dos personagens e da própria narrativa
Anton Tcheckov
01/08/2010

Em 1890, Anton Tcheckov fechou temporariamente seu consultório de médico para uma longa viagem à ilha de Sacalina, no longínquo leste da Rússia. O escritor contrariava a família, que o queria próximo e se tratando da tuberculose, doença que o corroia há seis anos, e também a comunidade científica, que não via sentido em uma viagem tão desgastante a um lugar que era o próprio inferno na Terra. Sacalina era um território a esmo, para onde eram deportados criminosos e presos em geral. “Pelo que li e estou lendo”, disse Tcheckov em uma carta a seu editor, “consta-se que deixamos apodrecer milhões de pessoas nas prisões, sem razão, de maneira bárbara”. A leitura sobre a ilha de Sacalina iniciara por conta de um convite para o escritor fazer uma reportagem sobre o lugar. Trancado em seu consultório, doente e sentindo-se solitário, Tcheckov fez mais do que aceitar o convite. “Às vezes, é preciso viver”, declarou, antes de partir numa longa travessia, referindo-se aos livros que tratavam dos habitantes de Sacalina de modo superficial e retórico. “Na nossa sociedade, há muito discurso, pouca atenção verdadeira ao assunto e às pessoas”, disse, revelando uma preocupação moral que permearia cada vez mais a sua literatura. Em seus contos, Tcheckov deitava o olhar sobre os personagens, como se aproximasse com uma lupa do ser humano. Atentamente, fazia do detalhe, da rotina, uma revelação da própria existência.

Aos trinta anos, Anton Tcheckov já havia alcançado considerável reconhecimento em sua carreira literária, mas o sucesso nunca o deslumbrou. “Um negócio enfadonho e absurdo. Almoço regado a champanhe, algazarra, discursos sobre a consciência nacional, a conscientização do povo, a liberdade e assim por diante, ao mesmo tempo que a volta da mesa é percorrida num azáfama por criados de fraque, igualmente servos, e na rua gélida os cocheiros esperam. Isso significa o coroamento da mentira”, o escritor escreveu em seu caderno de anotações, após um almoço com a intelligentsia da época. “Eu acredito em pessoas, vejo a salvações em indivíduos, é neles que reside a força”, considerava, mantendo-se afastado de qualquer vínculo com partidos políticos e grupos intelectuais, para ele, sempre mais ocupados em enaltecer os próprios ideiais do que agir com efetiva justiça e moralidade. “Não podemos ocultar de nós mesmo nossas doenças, nem mentir e esconder nosso vazio com os farrapos alheios.” Nesse sentido, a ilha de Sacalina trazia à tona uma sociedade conivente com a atrocidade. “Somos responsáveis pelo confinamento, miséria e morte de milhares de pessoas, enquanto jantamos discutindo o assunto e culpamos os carcereiros pela barbárie que acontece na ilha.”

Talvez Tcheckov tenha aceitado fazer a reportagem sobre Sacalina para escapar de alguma forma da indiferença social que imperava maquiada nos discursos intelectuais. Não queria saber de números, de estatísticas, de ideologias, de retóricas sobre a pobreza e a desumanidade, queria conhecer o lugar, conversar com as pessoas, ver as condições em que viviam. Olhá-las de perto, a ponto de não poder fazer generalizações nem tecer teorias. “Além disso, sem dúvida havia algo em mim que também queria escapar”, escreveu em seu caderno de viagem. Era provavelmente o escritor que digladiava com o médico. Tcheckov escrevia entre as consultas e diagnósticos. Muitas vezes, se sentia sufocado pelas obrigações que lhe impunha a medicina. Tentava abrir mais espaço para a ficção, enquanto os seus colegas médicos aconselhavam-no para que esquecesse as distrações literárias. Tcheckov reconhecia que a profissão de médico lhe proporcionava um grande conhecimento da vida e do ser humano, mas, na verdade, a exatidão científica o exauria. Se não fazia sentido para a família, os amigos e os colegas da ciência ver o médico Anton Tcheckov, tuberculoso, embarcar numa longa viagem para uma ilha perigosa e distante, para averiguar de perto as condições de vida dos degredados, em vez de basear a sua reportagem em livros já escritos sobre o assunto, baseados provavelmente em outros livros, fazia totalmente sentido para o escritor, que ansiava por livrar-se das falsas aparências e poder entrar em contato com a verdade e autenticidade da vida, percorrer milhares de quilômetros a pé e de carro, por estradas em péssimas condições, e bater de porta em porta num recenseamento e pesquisa que o levou a falar com mais de dez mil habitantes. Foi só em Sacalina que Tcheckov realmente fortaleceu a sua vocação literária, “Ali, entre os presos e os colonos, aceitei a literatura como uma possibilidade de libertação, ou a única possibilidade ao meu alcance de expressão das contradições da vida”.

Contradições que o colocaram frente a frente com as pessoas, encontro que o levou a aprofundar a sua visão dos personagens e da própria narrativa. “Um mínimo de enredo e o máximo de emoção”, se tornou o seu caminho na escrita ficcional. Às histórias repletas de fatos e desfechos inesperados, que predominavam no gênero conto, ele preferiu criar atmosferas, abordando situações e conflitos que se abriam e que não necessariamente se encerravam no final do relato. É o que se denominou posteriormente de conto moderno, tendo Tcheckov como precursor. Mas para o escritor russo isso significava muito mais do que a renovação de um gênero, era um modo de viver e estar do mundo. De aproximar-se o mais perto possível dele, a ponto de captar no riso suspenso ou na respiração ofegante toda a história de um ser humano. O que interessava não era o que acontecia entre duas pessoas quando pulavam de um penhasco, ou investigavam um crime, ou fugiam no escuro da noite, ou se apaixonavam à primeira vista, mas quando seus olhos se cruzavam desprevenidos no meio de uma frase, quando um pensamento sobre o passado ou o futuro redirecionava um destino. São fatias de vida, pequenos instantes do cotidiano, estados de espírito que contêm em si, latente, toda uma existência.

Claudia Lage

Claudia Lage é escritora. Autora do romance Mundos de Eufrásia, entre outros.

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