Uma magia modesta

Caio Fernando Abreu escreveu Ovelhas negras, seu nono livro, de 1995, ao longo de trinta e três anos. Entre 1962 e 1995. Dos 14 anos aos 46 anos de idade, em quase dois terços de sua vida
Caio Fernando Abreu, autor de “Ovelhas negras”
31/10/2017

Caio Fernando Abreu escreveu Ovelhas negras, seu nono livro, de 1995, ao longo de trinta e três anos. Entre 1962 e 1995. Dos 14 anos aos 46 anos de idade, em quase dois terços de sua vida. Vinte e um anos depois de sua morte, convidado por Marcelo Spomberg para ser o mediador das sete mesas de debate do Festival Literário de Extrema (MG), em que Caio F. foi o autor homenageado, resolvi procurar minha velha edição de Ovelhas negras. Uma edição da Sulina, de Porto Alegre, que guarda um carinhoso autógrafo de Caio. É o seu livro mais excêntrico: difícil dizer onde fica seu ponto de apoio. Talvez também o mais enigmático. Senti logo que nele encontraria um caminho fértil para esse retorno a Caio que Marcelo Spomberg me propôs.

“Eram e são textos marginais, bastardos, deserdados”, Caio F. admitiu na época do lançamento. “Não sou do tipo escritor histérico que rasga e joga tudo fora. Será falta de rigor?” Ainda bem que Caio, diante dessa dúvida, sempre respondeu “não”. Não se trata de falta de rigor, mas de confiança em sua escrita. De uma aposta na grandeza das pequenas coisas. Na epígrafe de abertura de Ovelhas negras, tomada de A legião estrangeira, de Clarice Lispector, ele afirma sua paixão pelo desprezível e pelo incompleto. Nela, Clarice diz: “Por que publicar o que não presta? Porque o que presta também não presta. Além do mais, o que obviamente não presta sempre me interessou muito. Gosto do modo carinhoso do inacabado, daquilo que desajeitadamente tenta um pequeno voo e cai sem graça no chão”.

Ovelhas negras é, de fato, um livro instável, imprevisível, mas por isso mesmo muito rico. Entre os 25 textos que o compõem, um sempre me interessou de maneira especial: Lixo e purpurina, fragmentos do diário que Caio F. escreveu em Londres, onde viveu, durante o ano de 1974. Tinha 26 anos de idade. Vivia a triste experiência do exílio político. Logo na abertura, ele anuncia: “De vários fragmentos escritos em Londres em 1974 nasceu esse diário, em parte verdadeiro, em parte ficção”. O escritor admite que pensou muito antes de publicá-lo, porque “não parece pronto”. Mas foi justamente esse aspecto vulnerável e inacabado que o levou a incluir seu diário inglês em Ovelhas negras. Parece que Caio nunca duvidou do caráter incompleto de toda escrita, da insuficiência que define a ficção, das limitações a que todo escritor está sempre submetido. Não é fácil conviver com nossa ignorância. Em uma nota em 2 de março, ele diz: “A única magia que existe é estarmos vivos e não entendermos nada disso. A única magia que existe é a nossa incompreensão”.

Escrever é uma pequena magia — uma “magia modesta”, como definiu, certa vez, o argentino Adolfo Bioy Casares. Modesta porque, ao contrário dos grandes magos, os escritores não possuem dons especiais, nem travam diálogos com supostas forças superiores, ou manipulam fórmulas encantadas. Só se escreve modestamente — todo escritor escreve apenas com o que tem e com o que é. E ainda assim, quando escreve, o escritor não compreende inteiramente o que faz. Daí ser tão perigosa a vaidade, que pode levar um escritor a supor que domina o que, na verdade, o domina. Homem inquieto e muito irônico, Caio F. sempre duvidou de si mesmo e das próprias palavras.

No mesmo dia 2 de março de 1974, ele anota ainda: “Chorar por tudo que se perdeu, por tudo que apenas ameaçou e não chegou a ser, pelo que perdi de mim, pelo ontem morto, pelo hoje sujo, pelo amanhã que não existe”. Novamente: a consciência do fracasso, das coisas que ficam pela metade, daquilo que podia ser, mas não se realizou. Consciência dolorosa, que inferniza o escritor em sua viagem e que o acompanha até o ponto final. Consciência do incompleto, sempre incompleto, que nem o ponto final é capaz de resolver. Foi por saber disso que Caio não hesitou em reunir seus textos inacabados, ou mesmo desprezados, em um livro. Neste Ovelhas negras — ovelhas perdidas, esquisitas, marginais — que agora tenho nas mãos.

Duas semanas depois, em 14 de março, ele anota: “A sensação de estar afundando na areia movediça. No lodo”. Não se deve reduzir esse sentimento de desagregação a um estado de espírito. A fragmentação, ou mesmo dissolução, vai muito além dos aspectos psicológicos e existenciais. Ela faz parte da condição do escritor. É claro, esse contato direto com o fragmento retorna depois, com força, ao corpo de quem escreve. Caio continua: “Minha aparência é péssima, a mente e o corpo exaustos. Mas existe uma tranquilidade estranha. Não tenho mais nada a perder”. Ao aceitar a condição precária da escrita, ao desistir de lutar contra ela, o escritor (Caio F.) “cai em si” — e então pode se sentir sereno. É claro: são muitos os escritores de vida metódica. Basta pensar em Carlos Drummond, em seu gabinete do Ministério da Educação, sempre asseado e impecável. Ou em Lygia Fagundes Telles, até hoje uma dama de inegável nobreza, e que, mesmo assim, nunca deixou de entrar em contato com o bárbaro e o feroz.

Trata Caio, enfim, da literatura não só como uma magia modesta, mas como um estilo de luta — tão exigente quanto o judô, ou o jiu-jitsu. Há um heroísmo no ato de escrever, e por isso tendemos, tantas vezes, a mitificar os escritores. No dia 7 de maio, Caio F. — bem menos pretensioso — anota em seu diário inglês: “Pelo menos estou vivo. Em movimento, andando por aí, perdendo ou ganhando, levando porrada, passando fome, tentando amar. ‘De cada luta ou repouso me levantarei forte como um cavalo selvagem’, onde foi que li isso? Sei: Clarice Lispector, meu Deus, foi em Perto do coração selvagem”. A literatura inclui, portanto, e de modo necessário, alguma esperança.

Nas últimas anotações de seu diário, feitas já durante o voo de volta ao Brasil, Caio escreve: “Volta a pergunta maldita: terei realmente escolhido certo? E o que é o certo? Digo que todo caminho é caminho, porque nenhum caminho é caminho”. Refere-se, de forma mais imediata, à decisão de retornar para casa; mas fala, de um modo mais vasto, da escolha diária, e sempre renovada, a que um escritor se submete. Uma pequena magia por dia: eis o que um escritor espera de si. A magia aqui pode ser entendida, de modo mais realista e menos místico, como uma transformação. As estrelas nunca estão no mesmo lugar. Nossos pensamentos não param de se mover. A vida social é embate e luta. Por que a literatura se pareceria com uma estátua?

José Castello

É escritor e jornalista. Autor do romance Ribamar, entre outros livros.

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