Sabato e o homem sensível

A importância de se ler o argentino Ernesto Sabato
Ilustração: Dê Almeida
25/11/2015

Tema que sempre ressurge nos debates literários contemporâneos, os efeitos do avanço tecnológico sobre a literatura e sobre o mundo foram avaliados, com grande sensibilidade, pelo escritor argentino Ernesto Sabato em uma entrevista concedida ao mensário Prioridad, de Buenos Aires, no longínquo ano de 1974. Quarenta e um anos depois, suas palavras — intactas e fortes — me chegam em Medio siglo con Sabato, livro organizado por Julia Constenla para a editora Javier Vergara, de Barcelona. E chegam vivas, com uma assombrosa atualidade. Comprovando que Sabato — falecido em 2011, às vésperas de completar 100 anos — foi não só um grande escritor, mas também um sutil vidente.

“O homem novo terá de nascer de uma revalorização da ciência e da técnica”, afirma Sabato em seu depoimento. Mas como se daria essa nova valorização? Usando uma metáfora banal, a da geladeira — símbolo dos eletrodomésticos que tanto fascinaram os anos 1970 —, Sabato, que além de escritor foi também doutor em física, responde: “Devemos colocá-las no lugar que lhes corresponde. Eu não digo que se tenha que aniquilá-las; se trata de tirar a geladeira do altar em que a colocaram como uma espécie de deus laico e simplesmente transportá-la de volta para a cozinha”. Pensava Sabato que o homem deve revalorizar, assim, seus aspectos concretos — a vida cotidiana, as emoções, o diálogo caloroso, a intimuidade — “que foram abandonados por esta civilização racionalista”. A razão e seus produtos — a ciência, a técnica — engrandecem o homem, mas também dele arrancam algumas características cruciais. É preciso dosar a razão. Ela não pode estar à frente: quem deve continuar no comando é o próprio homem.

Distingue Sabato: “O homem não é feito só de razão pura, mas também de instintos, de sentimentos, de emoções. É preciso reivindicar esse homem institivo e emocional que foi proscrito por uma civilização racionalista”. Para o escritor argentino, esse desterro do homem sensível levou a humanidade a uma “catástrofe espiritual”. Em uma sociedade que privilegia a técnica, posso me arriscar a pensar quase meio século depois, o mesmo risco de desastre espiritual nos ameaça. Talvez ainda maior. Hoje, toda uma geração se forma sob o fascínio — talvez seja melhor dizer: o hipnotismo — da técnica veloz e da visão horizontal. O homem se joga todo para fora. Tranforma-se, cada vez mais, em efeito, resultados e superfície. Nesse mundo rasteiro, como pensar na literatura, que exige introspecção, solidão e um lento voo para dentro?

Hoje, toda uma geração se forma sob o fascínio — talvez seja melhor dizer: o hipnotismo — da técnica veloz e da visão horizontal. O homem se joga todo para fora. Tranforma-se, cada vez mais, em efeito, resultados e superfície.

Retomo a metáfora da geladeira que Sabato me ofereceu. Nesse mundo gelado — sem nervos, sem instinto, que é objetividade pura —, abre-se o espaço para a resistência dos homens de coração quente. Para a resistência dos homens sensíveis. A arte é um dos veículos disponíveis para isso. A literatura, entre eles, se destaca — até porque, no limite, para existir (para resistir) ela nada mais exige do que um lápis e uma folha de papel. As palavras de Ernesto Sabato resistem também, atravessaram um século e continuam a ecoar com força, porque correspondem a algo que é inerente ao humano. Nos longínquos anos 1970, era como se Sabato examinasse nosso século 21. Por isso vale a pena lê-lo. Vale a pena não se esquecer de Ernesto Sabato.

José Castello

É escritor e jornalista. Autor do romance Ribamar, entre outros livros.

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